Bauhaus: para além da estética, a escola de design revolucionária tinha agenda para o mundo moderno
"Eles eram assim: sem brilho nenhum", diria Niemeyer sobre os "bauhasianos", precursores do modernismo racional e funcionalista do século 20; mas eles não tinham só um projeto estético
Quando se pesquisa na internet ou em arquivos físicos pelo nome do importante designer herbert bayer, ele se inicia com ‘letras capitais’ — as maiúsculas. Assim: Herbert Bayer. Ao contrário da sua primeira forma escrita neste artigo, que não foi erro de digitação: herbet bayer.
Mas, quando falava de si mesmo, ou quando usava a língua escrita de maneira geral, era assim que bayer fazia: empregando só as minúsculas, inclusive para nomes próprios.
"por que escrevemos só em minúscula?", perguntaria-se, retoricamente, o artista, arquiteto e designer gráfico austro-americano que estudou tipografia e pintura-mural na mais polêmica escola de arte da Alemanha, posicionada na vanguarda histórica do modernismo racionalista que até hoje suscita críticas e fascínio: a Bauhaus.
e a resposta à pergunta é relativamente simples: "é inconsistente, no uso da língua, escrever de maneira diferente de como se fala".
quer dizer, "nós não falamos 'grandes sons', e é por isso que também não os escrevemos." para que ter dois alfabetos — um de minúsculas e um de maiúsculas?
"por que mesclar dois alfabetos de caracteres completamente diferentes (um "a" e um "A", por exemplo) na mesma palavra ou frase e, assim, tornar a linguagem escrita não desarmônica? ou pequeno, ou grande", diria ele, em tom definitivo, numa edição da revista bauhaus.
uma outra justificativa seria: para poupar tempo, especialmente nas máquinas de escrever, outrora mecânicas.
o funcionalismo das minúsculas é um dos conceitos introduzidos pelo racionalismo modernista dos bauhasianos. os outros, também muito criticados, são ainda mais visíveis: estão nos prédios, por vezes chamados de "sem graça", que se assemelham a repartições públicas e remetem à clareza (e à opaca pretensão) da técnica e da burocracia no seu sentido inaugural, não deturpado: o controle pragmático da vida.
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bayer convenceu walter gropius, um dos principais arquitetos do século 20 e fundador da escola de bauhaus, a "erradicar o uso de letras maiúsculas", aquele que gropius chamou "o cavalo de batalha de seus pupilos". a ideia inspirou a criação de novas tipografias, usadas nos materiais comerciais, folhetos e revistas de bauhaus de maneira disruptiva.

créditos: letterformarchive/ reprodução
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Esse é só um dos exemplos do que foi a moderna Bauhaus (e de seus brilhantes e excêntricos alunos). Fundada na República de Weimar (e financiada por ela) em 1919, a escola de design e arquitetura tinha uma agenda intensa e desafiadora: dar uma abordagem funcional, esteticamente ousada e prazerosa, pensada de maneira racional e inteligente, aos objetos, às construções e… à vida. A vida nas cidades, nas casas (os ‘habitats’ unifamiliares, como chamavam os bauhasianos), ou nos edifícios de habitação múltipla.
Seu princípio, delimitado por Gropius ainda em 1927, era o Neues Bauen, uma forma de produzir que dava mais importância ao processo produtivo que às formas finais, e transformava a Bauhaus não só num centro de criação estética, mas dava a ela uma agenda clara: elaborar os processos da vida.
Em contradição a outras espécies de correntes modernistas, como a francesa, considerada "formalista", o Neues Bauen, expresso tanto na arte como na arquitetura, unia a funcionalidade e a racionalidade a um compromisso claro com a justiça e o compromisso social. A intenção era fazer justiça aos materiais e às formas, distanciar-se de movimentos puramente estéticos e construir uma "nova Alemanha", sob uma "nova crença construtora", mais objetiva. Não um estilo, mas um projeto.

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Por essas ideias, claras nos modelos que inspiraram a escola, como a exposição Weissenhofsiedlung — ocorrida em Stuttgart, em 1927, e curada por Ludwig Mies van der Rohe, que viria a se tornar diretor da Bauhaus —, em que foram construídas 21 habitações (edifícios e casas) numa área periférica da cidade com o objetivo de fornecer moradias funcionais para a sociedade industrial alemã, a Bauhaus foi alvo de grandes protestos dos segmentos mais conservadores da sociedade alemã da época, principalmente daqueles que flertavam com a defesa dos ideais fundantes do nazismo, nacionalistas e germânicos.

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Classificada como "anti-germânica" por suas trocas intensas com estudantes internacionais (inclusive russos) e por seu envolvimento com ideais comunistas, a Bauhaus teve grande influência no desenvolvimento de uma arquitetura moderna europeia e americana, nos Estados Unidos e no Brasil.
"A imprensa internacional no fim dos anos vinte acompanhou com muito interesse o desenvolvimento arquitetônico na Alemanha", conta, em artigo, a pesquisadora de História da Arte Joanna Bialobrzeska. Nos Estados Unidos, mais de 100 publicações feitas em jornais citam a escola e sua influência na arquitetura entre 1919 e 1936.
No Brasil, embora a influência de Bauhaus no começo da década de 1920 tenha sido parca, um arquiteto e ex-aluno da Bauhaus, Alexandre Altberg, decidiu fundar e editar a própria revista de design, a "base – revista de arte, técnica e pensamento", em 1933.
Ele baseou a revista no princípio de não-maiúsculas de Bayer, e usou, para compô-la, as fontes tipográficas sturm blond (design de Bayer) e Kombinationsschrift, de outro estudante da Bauhaus, Josef Albers. Assim como eles, Altberg só usava minúsculas na sua 'base'.

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Apesar da pouca influência nas revistas de arte nacionais, a Bauhaus esteve evidente na passagem de elementos do modernismo alemão para o estilo brasileiro de construções financiadas por projetos do governo federal, especialmente escolas e habitações sociais, conta Bialobrzeska.
"A justaposição do alinhamento renovador (baseado nos conceitos de racionalidade, eficiência e padronização) e a dedicação à arquitetura tradicional levaram os arquitetos a experimentar no mesmo objeto formas misturadas com Art Deco ou o Ecletismo historicista", continua ela. "Vários pesquisadores notam uma possível influência do modernismo europeu na elaboração dos prédios das escolas, sobretudo de Le Corbusier e Mallet-Stevens, mas também do racionalíssimo alemão".
Le Corbusier, o arquiteto e urbanista francês-suíço com longa passagem pelo Brasil, tem várias obras assinadas aqui, e influenciou grandemente a Bauhaus do modernismo alemão.
A intenção de Gropius, o fundador da Das Staatliche Bauhaus (“casa estatal de construção”, em tradução livre) era produzir um profissional total: um gestalter, alguém que desse conta de produzir de maneira integral e compromissada, e que, por experimentar cada passo da produção (do planejamento arquitetônico e do design à mão de obra), fosse também um fruto dele.
O gestalter é aquele capaz de considerar não só a ideia ou a estética de um plano modelo, mas sua função prática e a vivência efetiva, convergindo várias disciplinas num só projeto: do urbanismo ao paisagismo, do racionalismo inteligente à estética original.
Essa formação queria superar o tratamento, dado no século 20, das artes puramente estéticas (as belas artes) como atividades superiores, e integrar o funcionalismo das artes aplicadas, como a arquitetura, a conceitos de design e artesanato. A defesa do funcionalismo e do modernismo resultou de uma convergência entre várias disciplinas: do planejamento urbano à arte total, a transformação da vida em experiência estética, conceito de origem nietzscheana.
A vida é um processo constante de formação (e autoformação) estética, em que se dá sentido ao próprio mundo e à beleza. O indivíduo modela a própria vida, portanto, como um artista, um arquiteto ou urbanista modelam um quadro ou um espaço urbano.
A vida estética, ou a estética da vida (o processo de construir-se a si mesmo e à sua existência como quem traça uma obra), é também um trabalho ético: é um conjunto formado pela responsabilidade de escolhas, da autofundação e da busca por viver uma vida plena. Os meios para alcançá-la são definidos a cada instante da experiência.
Assim também um arquiteto de Bauhaus deveria experienciar suas criações: como um funcionalismo estético — e ético — da vida.
Niemeyer, o mais importante arquiteto brasileiro, foi um dos grandes críticos da escola.
Ele chegou a ter desavenças com Grotius, que o visitou no Brasil, na sua exuberante e curvilínea Casa das Canoas, projeto residencial próprio de Niemeyer em São Conrado, no Rio de Janeiro.

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À ocasião da visita, Grotius elogiou a residência do arquiteto, mas disse a Niemeyer: "é bonita, mas não é multiplicável". O causo, que enfureceu Niemeyer, foi contado durante uma entrevista concedida por ele ao Correio Braziliense. A fala infeliz de Grotius denota a filosofia de Bauhaus levada ao extremo: uma escola com uma visão normativa para a modernidade, pelo menos da parte de seus 'gestalters'. E essa visão não envolvia a criação de projetos particularistas, mas de modelos funcionais, racionais e compromissados com o meio — e a coletividade — social.
Niemeyer discordava. Acreditava que os teóricos e arquitetos da Bauhaus eram "a turma mais imbecil que apareceu", e criticava sua visão da casa como "habitat", conceito de moradia funcional que servisse a determinados propósitos — e a propósitos determinados. A ideia, enfim, de dar um sentido racional e coletivo a tudo.
"[Para eles] não interessava a forma", prossegue Niemeyer na mesma entrevista ao Correio, "desde que o quarto estivesse perto do banheiro, a cozinha perto da sala, e funcionasse bem. Foi um período de burrice que conseguimos vencer."
Ele narra o momento da visita de Grotius e o chama de "um babaca completo". Para que a casa fosse "multiplicável", explica, seria preciso ter um terreno plano e um projeto menos ousado: "eles eram assim: sem brilho nenhum."
Le Corbusier, na opinião de Niemeyer, foi uma das reações positivas que alcançaram se desvencilhar da "burrice" que "queria entrar na arquitetura" a partir de Bauhaus.
Mas é irônico, como nota Saulo Mileti em artigo à B9, que mesmo Niemeyer tenha se submetido ao conceito de funcionalismo como agenda moderna para o mundo que pregava a Bauhaus: o que ele idealizou para a cidade de Brasília — principalmente seu projeto para a sede dos Ministérios — é, em sua essência, composto por planos “multiplicáveis, funcionais e pensados para o 'todo', não [só] no indivíduo”.
Seus projetos habitacionais alocados no centro de cidades prestes a industrializar-se, feitos para comportar a migração de grandes massas de trabalhadores e para servir de ‘habitats’ funcionais, como o famoso Conjunto JK, em Belo Horizonte — um um conjunto habitacional pensado para “todas as classes”, e formado por apartamentos pequenos e práticos —, ou mesmo os edifícios da capital federal, dão-se na mesma proposta.
"O arquiteto dos monumentos de Brasília é citado como um representante do modelo no Museu de Bauhaus, inaugurado em setembro, em Dessau [berço da escola], como parte das comemorações do centenário da escola fundada em 1919 em Weimar. Há mais semelhanças que desavenças", diz uma reportagem do Correio Braziliense em 2019.
Deve-se pensar na escola Bauhaus, portanto, em termos de sua ideologia: o que a escola inaugurava, para além da estética, era uma agenda para o mundo moderno.