"Sínodo do Cadáver": a bizarra história que assombra o Vaticano e o papado há séculos
Esta é a história de como um Papa foi desenterrado para ser julgado por seu sucessor
Estêvão VI foi o 113º Papa da Igreja Católica. Eleito em 896, sucedeu o conturbado pontificado do Papa Formoso e entrou para a história por protagonizar um dos episódios mais bizarros e sombrios da história da Igreja: o julgamento póstumo de seu antecessor, conhecido como Synodus Horrenda, ou “O Sínodo do Cadáver”.
A eleição de Estêvão foi amplamente favorecida pela dinastia de Espoleto, especialmente por Lamberto, rei da Itália e imperador dos Romanos, e por sua mãe, Ageltrudes, viúva de Guy III de Espoleto.
Ambos haviam acumulado ressentimentos profundos contra o Papa Formoso, cuja política se opôs diretamente aos interesses da Casa Spoletana nos últimos anos de sua vida.
O 'jogo dos tronos': a guerra pelo trono italiano
O Papa Formoso já havia experimentado momentos difíceis ao longo de seu papado, iniciado em 891. Logo no começo, recusou-se a intervir a favor de Fócio I em Constantinopla e posicionou-se abertamente nas disputas que envolviam a sucessão ao trono da França Ocidental, apoiando Carlos, o Simples, contra Odo de Paris.
Mas o ponto crítico de seu governo se deu com a política em relação ao trono italiano e ao título de imperador do Sacro Império Romano. À época de seu papado, o imperador reinante era Guy III de Espoleto, chefe de uma dinastia italiana que disputava poder com os carolíngios germânicos. Guy forçou Formoso a coroar seu jovem filho, Lamberto, como co-imperador, numa tentativa de consolidar sua linhagem no poder. O papa cedeu sob pressão, mas nunca escondeu sua desconfiança em relação aos Spoletanos, a quem via como ameaça à independência do papado (e de Roma).
A morte de Guy III, em dezembro de 894, deixou Lamberto ainda menor de idade e sob a tutela de sua mãe, Ageltrudes, uma mulher de personalidade inflexível e adversária declarada dos carolíngios. A partir de então, o papa viu a oportunidade de romper com os Spoletanos e buscou apoio no norte: convidou Arnulfo da Caríntia, rei da Germânia e descendente carolíngio, para invadir a Itália e disputar o trono imperial.
Arnulfo atravessou os Alpes, conquistou o norte da Itália e, em fevereiro de 896, invadiu Roma. Ageltrudes, que havia tomado a cidade, foi derrotada por ele. No dia seguinte, Formoso coroou Arnulfo imperador na famosa Basílica de São Pedro. O gesto representava o fim da influência Spoletana e a retomada carolíngia do poder imperial. Mas a vitória durou pouco. Durante a campanha contra os últimos redutos spoletanos, Arnulfo sofreu uma paralisia súbita e foi forçado a recuar, fazendo com que o trono italiano ficasse, mais uma vez, à mercê do jogo político.
Poucos meses depois da coroação de Arnulfo, em abril de 896, Formoso morreu — provavelmente por causas naturais, embora boatos sobre envenenamento tenham circulado a cidade na época. Com a debilidade de Arnulfo e a morte do papa que lhe dera apoio, Lamberto e Ageltrudes recuperaram o controle de Roma. Sob sua influência, o Colégio de Cardeais então elegeu Estêvão VI, um bispo com forte ligação com os Spoletanos, especialmente com a "terrível Ageltrudes", a mãe impassível do imperador.
Estêvão, logo após assumir, deu início a seu bizarro plano de revanche política. Sob insistência de Lamberto e Ageltrudes, o novo papa ordenou que o cadáver de seu antecessor fosse exumado, vestido com os paramentos papais e colocado sentado em um trono na Basílica de São João de Latrão, diante de um tribunal simulado. O objetivo era julgar de maneira póstuma o antigo pontífice.
O Sínodo do Cadáver
O cadáver de Formoso, já em avançado estado de decomposição e parcialmente mumificado, foi submetido ao grotesco ritual do julgamento. Um diácono foi encarregado de responder por ele às acusações, que incluíam ter aceitado o papado enquanto ainda era bispo de outra diocese (Porto), algo proibido pelas normas canônicas da Igreja.
A cena era, realmente, absurda: um corpo morto, vestido como papa, foi interrogado e, naturalmente, considerado culpado. Como punição simbólica, Estêvão VI anulou todas as ordenações feitas por Formoso e mandou cortar os três dedos da mão direita que costumava usar para dar bênçãos. Por fim, seu corpo foi lançado ao rio Tibre.
O escândalo abalou profundamente o Vaticano, a população de Roma e o clero europeu. O repúdio popular ao julgamento fez com que Estêvão VI fosse deposto poucos meses depois, encarcerado e estrangulado na prisão aos 47 anos.
O papa seguinte, Teodoro II, anulou as decisões de Estêvão, e, mais tarde, João IX condenou formalmente o julgamento de fachada, e honrou a memória de Formoso. Seu corpo, recuperado do Tibre, foi sepultado novamente, agora com honras. O Synodus Horrenda passaria para a história como um símbolo de decadência moral e da degradação política do alto clero romano do século IX.