URSS

A guerra que se encerrava há 80 anos — e se transformava em símbolo para uma população

Como as comemorações de uma data histórica continuam a unir uma população russa em torno de um sagrado comum

Escrito em História el
Mestranda em Ciência Política e bacharel em Relações Econômicas Internacionais pela UFMG, já foi treinee de Ciência e Saúde da Folha de S. Paulo e escreve sobre Ciência e Tecnologia para a Revista Fórum. Tem interesse por temas de geopolítica e economia internacional.
A guerra que se encerrava há 80 anos — e se transformava em símbolo para uma população
Desfile do Dia da Vitória em Moscou, 9 de maio de 2020. Wikimedia commons

Há 80 anos, na noite do dia 9 de maio de 1945, fogos de artifício iluminaram o céu de Moscou, sob o qual centenas de milhares de pessoas se reuniram para festejar um evento histórico: a rendição incondicional da Alemanha nazista, que pôs fim à II Guerra Mundial — chamada, na URSS, de “Grande Guerra Patriótica” (????´??? ???´?????????? ?????´). A Praça Vermelha foi tomada por um desfile de mais de 40 mil soldados do Exército Vermelho, com 1.850 veículos militares e a exposição de bandeiras capturadas do regime nazista, no maior evento já sediado no local.

 

A assinatura do documento de rendição alemã havia sido celebrada em uma cerimônia oficial conduzida em Berlim, poucos minutos após a meia-noite do dia 9, no horário de Moscou.

Enquanto a Europa comemorava, poucas horas antes, no dia 8 de maio, o primeiro documento de rendição assinado pelos nazistas — no dia anterior e em território francês —, os moscovitas seguiam seu próprio rito, levando em consideração a rendição que fora assinada pela segunda vez, na Alemanha, por insistência da URSS.

Estima-se que as baixas do exército soviético e as mortes de seus civis durante a guerra tenham somado entre 20 e 27 milhões de pessoas.

Pela grandeza do momento, e para honrar os esforços das repúblicas socialistas que conduziram o conflito ao armistício, as comemorações do V-day (Victory Day, ou "Dia da Vitória"), como passaria a ser chamada a data, estenderam-se na URSS pelos dias subsequentes. Em 24 de junho daquele ano, uma grande celebração na Praça Vermelha reuniu milhares de tropas soviéticas e uma exposição visual dos equipamentos capturados da Alemanha. Ano após ano, o evento se repetiu (e se repete) na Rússia, em diversas regiões, e se tornou um símbolo de unidade e patriotismo, mesmo após o fim da União Soviética.

Comemorações na Praça Vermelha em 9 de maio de 1985.
Créditos: Linchenko et al., 2019

Em 1965, a data se tornou feriado nacional no país. Durante a era soviética, as celebrações costumavam dividir-se em três momentos: na cidade, um desfile reunia multidões para honrar os veteranos e relembrar o sacrifício feito pelos soviéticos para pôr fim ao massacre nazista. Uma cerimônia era conduzida em homenagem aos mortos do conflito no memorial da Segunda Guerra, em Moscou, e a Chama Eterna era acesa em função do evento. O dia se encerrava, então, com uma celebração doméstica, entre amigos e familiares, que se juntavam para uma refeição conjunta.

"Os desfiles serviam como um alerta ao Ocidente sobre a tolice de entrar em conflito armado com a União Soviética", conta, em artigo, Jeanmarie Rouhier-Willoughby, que leciona História da Rússia, Literatura e Cultura na Universidade de Kentucky.
"Eles tranquilizavam aqueles que haviam vivido o período da industrialização e da guerra, garantindo que seus sacrifícios não foram em vão. O complexo militar-industrial [da URSS], pelo qual trabalharam e se sacrificaram tanto, iria manter suas famílias a salvo no evento de outra guerra."

A chama eterna

Em 1947, no entanto, Stalin removeu o feriado oficial do calendário soviético. As cerimônias públicas foram arrefecidas e, nas escolas, o tema da guerra foi cada vez menos abordado, numa reorientação do culto à vitória popular da URSS. 

Ao longo da década de 1950, as celebrações limitavam-se a discursos oficiais e menções em jornais estatais. Já não havia grandes desfiles ou mobilizações de grande porte.

Isso só voltou a ocorrer na década seguinte, com a aproximação dos 20 anos da vitória, quando a URSS estava sob a liderança de Leonid Brejnev. Em 1965, o desfile na Praça Vermelha foi retomado, e a Chama Eterna se acendeu em memoriais de todo o país.

"Em todas as grandes cidades da Rússia, desde os tempos soviéticos, existe um lugar especial, composto por um memorial aos soldados e vítimas da guerra, esculturas de mármore e a Chama Eterna [a tocha que queima em homenagem aos mortos do conflito]", explicam os pesquisadores Andrei Lichenko e Oksana Golovashina em artigo publicado no *Journal of Social Science Education*.
"Todos os anos, em 9 de maio, flores são depositadas e discursos solenes e memoráveis são proferidos em torno desse memorial".

A manutenção do ritual é importante, dizem eles, porque uma população precisa de mais do que um contrato social para sentir-se conectada às ideias de pátria e nação: necessita de elementos do "sagrado compartilhado", de rituais que transfiram valores reconhecidos como geracionais e que instiguem a solidariedade social.

"O ritual tem algo a ver com o sagrado", diria Émile Durkheim, e os autores concordam: "Independentemente de ser um evento secular ou religioso, os cidadãos precisam se sentir conectados com algo 'sagrado'".

Estudantes soviéticos e ingleses depositam flores no memorial “Chama Eterna”, em
Sóchi. 9 de maio de 1990.
Créditos: Linchenko et al., 2019

As práticas de comemoração do V-Day foram se alterando ao longo dos anos, tornando-se mais performáticas do que grandiosas, e mais um culto à personalidade de grandes heróis de guerra do que à união social e ao sacrifício geral da nação pelo fim da Grande Guerra.

"A performatividade das práticas modernas", dizem os autores, "aumenta a relevância das ideias da biopolítica."

Leia também: Biopolítica: o que é o conceito de Foucault que explica o poder na modernidade - Revista Fórum

Elas estão centradas na figura de um corpo, que, por sua vez, simboliza o legado de uma população e sua sobrevivência em meio a uma ameaça à sua integridade e à sua existência: em geral, um descendente do veterano de guerra homenageado performa o rito de se amarrar uma fita de São Jorge [símbolo da coragem e do heroísmo], ou de segurar um retrato do próprio veterano para lembrar seu heroísmo.

As cerimônias continuam a unir a população russa em torno de um conceito compartilhado do sagrado, e contribuem para "levar em consideração o lugar dominante da Vitória no panteão simbólico" que forma o "corpo coletivo do Leviatã", concluem Lichenko e Golovashina.

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