MC Poze e a máquina “invisível” do racismo brasileiro
A prisão do cantor expõe como o preconceito racial molda decisões judiciais e perpetua desigualdades históricas no país
A prisão do cantor MC Poze do Rodo em 29 de maio de 2025 não é apenas mais uma manchete criminal envolvendo um artista famoso. É um capítulo repetido da história amarga e persistente do racismo estrutural brasileiro. Um país que insiste em afirmar uma democracia racial imaginária enquanto alimenta silenciosamente a máquina que encarcera corpos negros e periféricos com a precisão mecânica de um relógio suíço. MC Poze não é só um cantor preso por suposta apologia ao crime. Ele é mais um jovem negro capturado pela armadilha histórica do preconceito que rotula, acusa, julga e condena antes mesmo que sua defesa tenha espaço para existir.
A acusação contra MC Poze é de envolvimento com a facção Comando Vermelho e apologia ao tráfico nas letras de suas músicas. Mas devemos questionar quem detém o poder de classificar e punir expressões culturais. Jovens periféricos cantam suas realidades, muitas vezes brutais, moldadas pelo abandono do Estado. Suas vozes ecoam porque o Brasil insiste em oferecer a periferia apenas duas opções reais, a criminalização ou a invisibilidade.
Por outro lado, a seletividade do sistema penal fica ainda mais evidente quando comparada com casos como o da ministra Vera Lúcia, vítima recente de racismo explícito dentro de um prédio da AGU. Mesmo ocupando uma posição de elevado poder institucional, Vera Lúcia enfrentou ataques racistas que revelam a persistência de uma mentalidade colonial que tenta reduzir pessoas negras a posições subalternas, independente das suas conquistas pessoais ou profissionais.
O contraste entre MC Poze e Vera Lúcia expõe as diferentes faces da mesma moeda racista. O Brasil tolera e normaliza agressões contra corpos negros, seja no cárcere ou nos corredores acarpetados das instituições públicas. O racismo brasileiro, ao contrário do que se afirma ingenuamente, não é cordial nem sutil. Ele grita nas entrelinhas de cada sentença judicial desproporcional, em cada abordagem policial violenta nas periferias, e também em cada desqualificação profissional direcionada a uma ministra negra.
O encarceramento em massa no Brasil não é um acidente histórico ou uma consequência natural da criminalidade. É um projeto político, social e econômico que opera com eficácia assustadora para manter intactas as estruturas coloniais de poder e exclusão. Mais da metade da população carcerária brasileira é composta por pessoas negras. Isso não pode ser visto como mera coincidência. Trata-se de um reflexo direto das práticas históricas de controle racial, desde a época da escravidão, passando pela criminalização da capoeira no século XIX até a perseguição atual ao funk, o ritmo negro das periferias que incomoda a elite branca justamente por ser um grito de resistência.
MC Poze é apenas a vítima mais recente desse sistema de controle racial e social, um sistema que escolhe suas vítimas com precisão cirúrgica, quase sempre corpos negros e pobres, para satisfazer uma suposta segurança pública que nunca chega realmente para quem mais precisa dela. O silêncio diante dessa realidade não é apenas uma omissão moral, mas uma cumplicidade ativa com a manutenção do racismo institucionalizado.
O Brasil precisa confrontar seu racismo com coragem e honestidade intelectual. A prisão de MC Poze é um chamado à reflexão profunda e à ação concreta. Não basta repudiar o racismo nas redes sociais, é preciso desmontá-lo no judiciário, na polícia, na educação e nas estruturas econômicas. O racismo brasileiro mata lentamente, todos os dias, não só fisicamente, mas também psicologicamente e simbolicamente. Ele rouba oportunidades, cerceia sonhos e destrói vidas inteiras, enquanto a sociedade assiste passivamente, fingindo surpresa a cada nova notícia.
Cada cidadão brasileiro, especialmente os que detêm privilégios históricos, precisa compreender que o combate ao racismo não é uma concessão benevolente, mas uma obrigação urgente. A prisão de MC Poze, a agressão contra Vera Lúcia, e tantos outros casos menos famosos, mas igualmente dolorosos, são o retrato vivo de uma sociedade profundamente doente. O racismo, essa doença social crônica e violenta, precisa ser enfrentado com medidas concretas, leis firmes e práticas institucionais que promovam verdadeira igualdade.
Chegou o momento de o Brasil olhar com sinceridade para suas entranhas e reconhecer que o racismo não é um desvio pontual, mas a própria essência da nossa desigualdade. Só assim será possível começar a escrever um novo capítulo, em que MC Poze, Vera Lúcia e milhões de brasileiros possam viver com dignidade e sem medo. Esse é o desafio histórico de nossa geração, e ele não admite mais adiamentos nem desculpas.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum.