Opinião

Oruam: dois populismos e um bode na sala

Esquerda rejeita e acolhe Oruam em nome de populismos opostos, mas igualmente falsos

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Professor, jornalista e pesquisador em teorias da democracia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Escreve para Revista Fórum, com foco em temas de sustentabilidade, política e cultura.
Oruam: dois populismos e um bode na sala
Oruam. Reprodução/Instagram

A relevância de Oruam é indiscutível. Com milhões de ouvintes, o rapper é um fenômeno que arrasta multidões de jovens pelo país. É um catalisador de muitos dos dilemas que cercam a população mais pobre e, próximo do que foram os Racionais nos anos 1990, é porta-voz de questões que a política institucional e partidária falha em rastrear. Se Ezra Pound tem razão, não há dificuldade  alguma em dizer que Oruam é também uma antena da raça humana.

Falo precisamente da arte. Considerando que a obra ultrapassa o autor, tenho pouca feição pelo artista, ainda que seja magnetizado pelas contradições que o cercam: antes de se tornar Oruam, Mauro, seu nome de batismo, é filho de Marcinho VP, um dos traficantes envolvidos no assassinato do jornalista Tim Lopes, morto em 2002 após cobrir a exploração sexual de menores.

Fosse apenas uma ligação genética, essa informação seria irrelevante para este texto. Filhos não herdam as inclinações dos pais. Oruam é, antes de mais nada, um artista perspicaz, não o “filho de um traficante”. Reduzi-lo a isso é não diferenciar, como ele mesmo reconhece, o indivíduo, com sua trajetória de vida privada, e a persona conscientemente estilizada em sua proposta estética.

Mas a realidade nos lembra que abstrair dos fatos nem sempre é possível, mesmo quando conveniente. Em 2024, ao subir no palco do Lollapalooza, Oruam criou alvoroço no debate público ao vestir um blusão em defesa da liberdade de Marcinho VP. Onde ele enxerga o pai — e, por motivos pessoais, não há nada de condenável nisso — vimos a figura pública do criminoso. Mauro com suas razões; o público, com as dele.

No entanto, sua admiração pessoal pelo pai ganhou dimensão estritamente política. Oruam não se contentou em lutar pela soltura de VP nas instâncias legais: fez também da figura do pai — e do "tio do coração", executor de Tim Lopes — uma bandeira política. Não a do encarceramento em massa ou da violência policial em associação com a milícia, mas a de suas próprias afeições.

No palco, como em tantas outras ocasiões em que defendeu o pai e ostentou a iconografia do tio tatuada no peito, Oruam tomou a decisão de assumir o partido de Mauro. Seja por afeição parental — Oruam relata que VP foi um ótimo pai —, seja por querer suavizar os crimes diante da biografia difícil do progenitor, o artista se valeu de sua influência para relativizar uma conduta que ninguém deveria ter dúvida em repudiar. Cruza a linha perigosa da glamourização para quem diz apenas querer a ressocialização do pai.

Nesse ponto, não tenho simpatia por Mauro, nem disposição em exorcizar seus demônios com recomendações de leitura de Lélia Gonzalez ou Clóvis Moura. É um tema para a psicanálise, não para a política. Na esfera pública, é mais pertinente entender como as forças de esquerda se associam a ele e, ao mesmo tempo, o rejeitam, em nome de dois populismos opostos, mas igualmente falsos.

No primeiro tipo populista, temos o populismo eleitoreiro, que enxerga em Oruam uma figura prejudicial à esquerda. Nessa posição, abre-se uma brecha para todo tipo de estigma classista e racial que se associa,  mesmo quando  sem intenção, à cruzada direitista na busca de criminalização do funk. Para além de sua complexidade, vê-se em Oruam apenas uma espécie de “influência parda” do crime organizado. Apela-se — e aí está o populismo — para o humor do senso comum, que supostamente interpretaria essa associação como um flerte entre esquerdistas e o crime. Sob a defesa da punição firme contra criminosos que tiranizam a população, para o populista eleitoreiro toda ação deve estar centrada nas eleições, e não na disputa do campo mais amplo da consciência cultural. A esquerda deve se render ao atual estado do senso comum na busca por dividendos eleitorais. Mas esse populismo não é único.

Por outro lado, temos os que apostam em Oruam. Nessa perspectiva, ele não é apenas um agente da cultura, mas uma célula política que ainda não entendeu sua razão de ser no mundo. Na semana em que o jovem Herus, de 24 anos, perdeu a vida para a violência policial e Poze foi preso em uma operação ostensivamente truculenta, o desejo dessa aposta não é descabido. O próprio Oruam deu visibilidade às manifestações de repúdio aos desmandos do Estado. A despeito de centenas de iniciativas que abordam a violência policial, ainda somos órfãos de figuras que, como ele, catalisam a revolta para além das nossas câmaras de eco.

No entanto, o problema é a ilusão de que Oruam possa, e deva, cumprir um papel para além do lugar que ocupa na cultura. Essa posição populista apoia-se unicamente na ideia de que, por reunir uma horda de jovens, Oruam se prontifica como representante cativo do povo, isento de qualquer responsabilidade pelas posições que possa assumir, dada sua ascendência. Todos os seus desvios são justificados por sua biografia. É o garoto celerado, uma espécie contemporânea do bom selvagem, à espera da instrução da vanguarda autoproclamada, como se sua tomada de consciência dependesse única e exclusivamente das leituras corretas.

Nesse sentido, “centralizá-lo” não é tarefa fácil. Como significante vazio, Oruam tensiona muitas forças em conflito que, se no plano da cultura podem coexistir de forma esteticamente interessante e produtiva, no plano da política pagam o preço de serem insolúveis e inoperantes. Ao mesmo tempo que canta as dores e ambições do povo pobre, é também um gozador capaz de relativizar crimes.

Não é preciso dizer que ambos os populismos lidam muito mal com Oruam. E, até que descubramos como abordar o bode na sala, será tarde demais para colher quaisquer frutos políticos a partir de sua figura — seja rejeitando-a pelo populismo eleitoral, seja acolhendo-a pelo populismo complacente.

Minha posição, no entanto, não é centrista. Torço para que Oruam continue cantando e, até onde for possível, sensível às pautas fundamentais para uma sociedade melhor, sem o terrorismo policial do Estado. Acredito que sua politização iminente pode, paradoxalmente, enfraquecê-lo justamente naquilo que faz de melhor: entrar em zonas de identificação e influência onde nós, com nossas posições cristalizadas demais, simplesmente não conseguimos acessar — entre outras razões, porque os dois populismos presentes no debate insistem em retirar as contradições do mundo. 

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum.

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