No momento que marca os 61 anos do golpe de 1964, que instaurou a ditadura militar no Brasil, um dos períodos mais violentos da história do país, uma análise inédita feita pelo Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC) revela o perfil das vítimas, entre mortos e desaparecidos, do período.
A publicação, feita com base no Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade (CNV) – Volume III, considerou os 434 casos de pessoas vitimadas pelo Estado brasileiro no contexto de repressão política do período de 1946 a 1988. Os dados foram transformados em estatísticas pelo Observatório Nacional dos Direitos Humanos (ObservaDH).
Te podría interesar
A análise busca conferir identidade aos mortos e desaparecidos da ditadura, já que muitas vítimas tiveram seus perfis apagados. “O levantamento é apresentado na forma de narrativa de dados no ObservaDH e permite um outro olhar sobre a amplitude e sistematicidade da repressão política no Brasil durante a ditadura militar. É importante reforçar que não são apenas números, são pessoas que tiveram suas vidas ceifadas por um regime de exceção”, afirmou Luciana Félix, coordenadora de Pesquisa e Difusão de Evidências do MDHC.
O coordenador-geral de apoio à Comissão Especial de Sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), Caio Cateb, acrescentou que a análise feita pelo ObservaDH colabora nas atividades de buscas e identificação nos casos investigados. “A coordenação-geral pretende aprofundar a análise com outras informações para que os dados possam servir de instrumentos de apoio em diligências de buscas de pessoas desaparecidas e subsidiar os processos de identificações de remanescentes humanos”, disse.
Te podría interesar
O estudo destacou que os casos dos 434 mortos e desaparecidos políticos não ocorreram de maneira uniforme ao longo dos anos de 1946 a 1988. A publicação afirmou que, antes mesmo do golpe militar, ainda no período democrático, foram registrados 12 assassinatos políticos, resultados da atuação do Estado brasileiro. Já entre 1964 e 1968, durante a fase inicial da ditadura, 51 pessoas foram assassinadas enquanto o regime buscava manter uma aparência de legalidade, consolidando o aparato repressivo.
“O cenário se agravou drasticamente após o Ato Institucional nº 5, de 1969 a 1978, resultando na morte de 351 pessoas, tornando-se o período mais violento da ditadura. Já entre 1979 e 1985, nos anos finais da ditadura militar, quando se iniciavam as negociações para a abertura política, ainda assim foram registradas 20 mortes, demonstrando que a repressão persistiu até os momentos finais do regime”, destacou o levantamento do ObservaDH.
Perfil dos mortos e desaparecidos da ditadura militar
De acordo com o levantamento, a grande maioria (82,5%) das vítimas tinha ligação com alguma organização política. Dentre as pessoas vinculadas a grupos ideológicos, 45,3% eram associadas, formalmente, a algum partido político.
O Partido Comunista do Brasil (PCdoB) foi a organização que registrou o maior número de militantes assassinados, totalizando 79 vítimas (18,2% do total de mortes levantadas pela CNV). Já a Ação Libertadora Nacional (ALN) teve 60 militantes mortos, o que equivale a 13,8% das vítimas, seguido pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB), com 41 pessoas assassinadas.
Em relação à faixa etária das vítimas, a idade média foi de 32,8 anos: 77,4%, tinham entre 18 e 44 anos e 49,3% estavam na faixa etária de 18 a 29 anos. O estudo destacou que durante os anos de chumbo, após a instauração do AI-5 em 1968, houve o maior percentual de pessoas com até 29 anos mortas ou desaparecidas, cerca de 55%.
Além disso, cinco vítimas estavam na faixa etária de 12 a 17 anos e uma criança de menos de um ano de idade foi morta.
Já no que se refere à ocupação das vítimas, 32,3% dos assassinados eram estudantes, o que "demonstra a forte repressão contra a juventude e os movimentos estudantis", de acordo com o MDHC. Já 13,1% dos mortos e desaparecidos eram operários de diversos setores.
Caio Cateb explicou esses dados referentes à ocupação, relembrando que o contexto anterior ao golpe de 1964 foi marcado por um período democrático em que os setores sociais, como estudantes e trabalhadores, estavam organizados para promover mudanças políticas, econômicas e sociais no país, muito fortalecidos pelo governo de João Goulart, que propôs as Reformas de Base.
“O governo Jango era respaldado em seu projeto de reformas de bases por grupos de trabalhadores organizados, como sindicatos, partidos e movimentos como o estudantil. O movimento estudantil, com destaque para a União Nacional dos Estudantes (UNE), esteve à frente de diversas manifestações centrais daquele período, como campanha pela legalidade da posse do Jango, a luta pela reforma universitária, o Congresso de Ibiúna e, consequentemente, os estudantes se tornaram alvos diretos da repressão dos agentes da ditadura, com episódios marcantes como o ataque à sede da UNE, as prisões no Congresso de Ibiúna, a morte do estudante Edson Luís e os inúmeros desaparecimentos”, afirmou Cateb.
O estudo também apontou que a proporção de mulheres assassinadas variou de acordo com a época do regime. Das 434 vítimas, 51 eram mulheres, representando 11,8% do total. Porém, o levantamento ressaltou que, entre 1979 a 1985, no final do regime militar, a proporção de mulheres vítimas fatais em relação aos homens foi significativamente maior do que nos anos anteriores, chegando a representar 25% das mortes.
Além disso, as mulheres tendiam a ser mais jovens do que os homens: 68,7% delas tinham entre 0 e 29 anos. Entre os homens essa porcentagem era de 48,3%.
O MDCH também investigou que a maioria (62,7%) das vítimas assassinadas morava em capitais. Em todo o país os crimes foram registrados em 15 estados e no Distrito Federal.
As cidades de São Paulo e Rio de Janeiro foram os principais centros de repressão, somando 47,2% das mortes, enquanto os estados de São Paulo e Rio de Janeiro juntos concentraram 49,5% dos casos.
Guerrilha do Araguaia
Além disso, a área onde se localiza o Araguaia, na região amazônica, também foi outro território marcado por grande violência. O local foi onde ocorreu a Guerrilha do Araguaia, que vitimou camponeses e comunidades locais.
Ainda conforme o levantamento do ObservaDH, pelo menos 27 dos mortos eram militares ou ex-militares. “Muitos militares que foram vítimas da ditadura estão ligados àqueles que integraram grupos e movimentos de praças e sargentos que contestaram a hierarquia militar por melhores condições de trabalho e salários, que, em muitos casos, foram expulsos ou saíram das forças”, afirmou Cateb.
Siga o perfil da Revista Fórum e da jornalista Júlia Motta no Bluesky.