Entendendo as diferenças entre as principais tradições de Matriz Africana no Brasil - Por Vitor Friary
São milhões de brasileiros conectados, de alguma forma, a práticas como Umbanda, Candomblé, Ifá e o Culto Tradicional Yorubá. Mas você sabe o que realmente diferencia cada uma dessas tradições? E o que as conecta?
Falar sobre espiritualidade africana no Brasil é mexer com raízes profundas. São milhões de brasileiros conectados, de alguma forma, a práticas como Umbanda, Candomblé, Ifá e o Culto Tradicional Yorubá. Mas você sabe o que realmente diferencia cada uma dessas tradições? E o que as conecta? Eu cresci na Umbanda. Desde pequeno, via minha família nos terreiros, sentia as energias, os toques dos atabaques, as palavras de sabedoria dos pretos-velhos, as danças dos caboclos. Aos cinco anos, já manifestava sinais de transe mediúnico. Algo que, na época, eu nem entendia, mas que me marcava profundamente.
Anos depois, fui iniciado no Candomblé. Aprendi os segredos das folhas, os cânticos em iorubá, a importância dos orixás como forças da natureza, e o rigor dos rituais que sustentam uma tradição africana adaptada ao Brasil. Mais tarde, me iniciei no culto a Orunmilá, conhecido como Ifá. Estudar os versos do odu, aprender a falar iorubá, entender o que é ser um iniciado de Orunmilá, o Orixá da sabedoria, foi como voltar à fonte de todas essas práticas. E hoje, posso dizer: cada uma dessas tradições tem seu valor, sua beleza, suas exigências. Mas também têm diferenças fundamentais que muita gente não entende que eu gostaria de esclarecer.
Umbanda: espiritualidade brasileira
A Umbanda nasceu no Rio de Janeiro, no início do século XX, misturando influências do espiritismo kardecista muitas vezes, do catolicismo, das tradições indígenas e, claro, das religiões africanas. É um sistema sincrético: ali cabem pretos-velhos, caboclos, exus, crianças e orixás e outras entidades. Os rituais são mais simples, os cânticos geralmente em português, e o foco está no trabalho social, no aconselhamento espiritual e no trabalho com os espíritos. Não há necessidade de iniciações complexas como no Candomblé ou no Ifá.
Candomblé: ancestralidade africana viva no Brasil
O Candomblé chegou ao Brasil com os africanos escravizados, principalmente da região onde hoje é a Nigéria, Benim e Angola. Ele preserva as estruturas de culto aos orixás, mas com adaptações. Aqui, os orixás são cultuados em casas chamadas terreiros, com hierarquias claras: iyalorixás e babalorixás, ekedes, ogãs e iniciados. A iniciação no Candomblé é complexa e exige dedicação: são rituais de vários dias, uso de folhas, banhos, oferendas, cantos em iorubá, toques de atabaque. Não é só devoção, é pertencimento a uma comunidade e a um axé.
Ifá e Culto Tradicional Yorubá: a fonte africana
Ifá por sua vez é o sistema de conhecimento sagrado do povo iorubá. É uma das práticas espirituais do território africano e pertence ao que chamamos como Isese Lagba ou Culto Tradicional Yorubá. No ifá, a divindade central é Orunmilá, o orixá da sabedoria e do destino. A prática de Ifá envolve o uso do oráculo (o opon Ifá, o ikin, o opelé ifá), a interpretação dos versos do odu para o desenvolvimento espiritual, psicológico e comportamental dos devotos. O sistema de Ifá tem por objetivo ajudar os seres humanos a se comportarem de maneira a alcançar progressos em sua vida, assim como promover saúde e bem estar físico, mental e espiritual.
No Brasil, há um movimento crescente de pessoas buscando aprender Ifá como é praticado na África. Isso exige estudo sério, aprendizado da língua iorubá, entendimento das cerimônias endógenas preservadas até hoje pelas famílias tradicionais de Orixá em terras yorubá. Diferente do Umbanda e muitos candomblés, não há sincretismo com santos católicos. O foco é o saber africano puro, transmitido de geração em geração por sacerdotes tradicionais.
O que une todas essas tradições? A raiz africana. O respeito à natureza. O culto aos orixás. A ideia de que somos parte de um sistema maior, regido por forças invisíveis. Quais são as diferenças entre essas tradições? A forma de cultuar. Na Umbanda, o foco é no trabalho mediúnico, nos guias espirituais e na prática aberta a todos, com o uso de cânticos e oferendas relacionados muitas vezes aos Orixás, porém sem processos iniciáticos originários. Já no Candomblé, a estrutura é mais intensa, com iniciações, hierarquia e rituais complexos e com processos iniciáticos que podem durar até de 21 dias a 3 meses, com ritos de origem africanas com algumas adaptações. No caso do preparo para o sacerdócio, a trajetória do candomblé pode levar entre 7 a 10 anos de preparo para a abertura de uma casa de axé. No Ifá e no Culto Tradicional Yorubá em geral, o conhecimento dos Orixás é transmitido por meio do oráculo e da tradição oral direta de sacerdotes experientes, em sua maioria africanos, e o sacerdócio igualmente passa para anos de preparo.
Os rituais de iniciação são menos demorados que no Candomblé, com duração de 3 a 5 dias. Algumas tradições africanas mantêm a duração de 21 dias a meses. É o caso dos ritos da cidade de Oyo, para muitos considerada a Meca para os devotos dos Orixás, importante centro de peregrinação. Lá as iniciações podem levar 21 dias, algo bem parecido com a tradição do candomblé onde a iniciação também tem a mesma duração. No caso do território da República do Benin, onde se cultuam as divindades conhecidas como os Voduns, os devotos que passam pelos ritos iniciáticos também podem ter ritos com duração de semanas a meses. Muitas casas de candomblé no país também adotaram modelos de culto aos Voduns com base na tradição do Benin, conhecido como os povos da nação Jeje.
Por que esses saberes importam? Porque ainda hoje, no Brasil, há muita confusão e preconceito sobre o que são essas tradições. Porque as expressões da espiritualidade africanas não são todas a mesma coisa. E porque respeitar a diversidade é o primeiro passo para construir um país mais justo e tolerante. Minha vivência me ensinou que não existe "melhor" ou "pior" tradição. Existe o que faz sentido para você. Mas antes de opinar, de criticar, de dizer que "é tudo macumba", é fundamental estudar, entender, ouvir quem vive essas tradições na pele. Seja na Umbanda, no Candomblé, no Culto Tradicional Yorubá o importante é o respeito. E o axé, que é para todos.