A frieza que vem de casa diante das mortes em Gaza
Nossos jovens parecem ter desenvolvido uma estranha insensibilidade. Veem imagens de destruição em seus celulares e reagem com um dar de ombros
Os adultos de nossa época encontram-se em estado de absoluta perplexidade. Seus rebentos, educados nos melhores princípios da civilização ocidental, alimentados com cereais fortificados e entretenimento digital de primeira, demonstram uma frieza alarmante, uma violência inexplicável. Como pode ser? Perguntam-se, enquanto ajustam as gravatas e consultam os últimos índices da Bolsa.
Dezoito mil crianças mortas em Gaza até março, informa o Ministério da Saúde palestino. Mas isso, naturalmente, é apenas uma estatística distante, um número que aparece, aqui e ali, entre as notícias sobre o clima e os resultados esportivos. Afinal, são crianças "deles, não "nossas". E nós, cidadãos de bem, temos preocupações mais prementes: o aumento do preço da gasolina, a qualidade do wi-fi, a performance do fundo de investimento.
Nossos jovens, entretanto, parecem ter desenvolvido uma estranha insensibilidade. Veem imagens de destruição em seus celulares e reagem com um dar de ombros. Presenciam injustiças e comentam com a mesma indiferença com que discutem o último episódio de sua série favorita no Netflix. Os pais, esses pilares da moralidade, coçam a cabeça em genuína confusão. De onde vem essa dureza de coração? Essa falta de empatia?
Talvez a resposta esteja mais próxima do que imaginam. É bem provável que nossa juventude tenha simplesmente aprendido a lição que lhes ensinamos com tanta eficiência: que algumas vidas importam mais que outras, que algumas mortes merecem lágrimas enquanto outras merecem silêncio, que a compaixão é um luxo que deve ser aplicado com seletividade, de acordo com a geografia e a conveniência política.
Quando uma criança morre em nossa rua, é tragédia. Quando mil morrem do outro lado do mundo, é estatística. Quando dez mil morrem, é política externa. Quando são dezoito mil, bem, é hora de mudar de canal.
E então nos perguntamos, com toda a sinceridade de nossa ignorância cultivada, por que nossos filhos se tornaram tão alheios. Como se o desdém não fosse a mais natural das reações a um mundo que lhes ensinou, desde cedo, que o sofrimento humano pode ser medido em graus de relevância, que a morte pode ser classificada como importante ou dispensável, dependendo de quem sucumbe e onde.
Esses jovens omissos são, na verdade, nossos discípulos mais aplicados. Aprenderam muito bem a arte do descaso seletivo que tanto praticamos. A diferença é que eles, com a honestidade brutal da mocidade, não se dão ao trabalho de fingir choque quando aplicam essas lições que aprenderam em casa.
O que nos perturba não é a violência em si, essa sempre toleramos, desde que terceirizada e bem distante da nossa calçada. O que nos incomoda é que ela se aproximou de nós, que deixou de ser assunto de política internacional para se tornar problema doméstico.
É a única coisa, em toda essa história, que ainda nos surpreende.