Quando Saussure atravessa Washington e o trumpismo transforma a linguagem pública em ruína semântica
Ao analisar os pronunciamentos de Trump sob a ótica de Saussure, revela-se um cenário onde palavras perdem precisão, ganham carga emocional e se tornam instrumentos de manipulação em tempos de crise democrática.
Desde sua posse em 20 de janeiro de 2025, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, tem moldado um discurso caracterizado por adjetivos superlativos e uma retórica hiperbólica, mesmo em contextos de alta complexidade, como conflitos geopolíticos, políticas migratórias e crises econômicas.
Tanto a análise de discurso quanto a análise de conteúdo sempre foram, de certa forma, temas de minha predileção na docência acadêmica. Assistindo aos telejornais e lendo os portais noticiosas e a imprensa escrita observo com preocupação que jornalistas e "comentaristas travestidos de especialistas" desaprenderam para que servem essas disciplinas.
Neste artigo, fundamentado na metodologia francesa de análise do discurso e na teoria saussuriana, examino os pronunciamentos de Trump entre 21 de janeiro e 25 de junho de 2025, explorando o lugar da fala, os significados e significantes, e o impacto da desinformação na linguagem contemporânea. Além disso, por oportuno, trato de incorporar a palavra proposta pelo presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva à Academia Francesa de Letras em maio de 2025, contextualizando a crise semântica da linguagem atual. Disponho-me a analisar padrões retóricos, impactos políticos e a encruzilhada da linguagem em um mundo saturado de fake news.
O lugar da fala e a retórica superlativa
Na análise do discurso, o lugar da fala refere-se à posição de poder e influência de quem enuncia. Como presidente, Trump ocupa um espaço de autoridade global, amplificado por plataformas como a Truth Social e a mídia tradicional.
Seus discursos, como o de posse em 20 de janeiro de 2025, quando proclamou “A era dourada da América começa agora”, sintetizam uma promessa de restauração nacional, vinculada a indicadores econômicos como o crescimento de 4,5% do PIB no primeiro trimestre e a criação de 139 mil empregos em maio, todos para trabalhadores nascidos nos EUA, segundo relatório da Casa Branca. Contudo, críticos argumentam que esse crescimento é parcialmente herança das políticas de Joe Biden, revelando claramente uma tensão entre a narrativa de ruptura e a continuidade econômica.
A frase “Vamos perfurar, baby, perfurar! Esta será a maior produção de energia da história do mundo”, proferida no mesmo dia, reforça sua agenda de expansão dos combustíveis fósseis, com a queda do preço da gasolina para US$ 3,20/galão em junho de 2025 como evidência de sucesso.
Ambientalistas criticam a negligência aos compromissos climáticos, enquanto economistas questionam a viabilidade de superar os recordes de produção de petróleo da década de 1970.
Essa retórica agressiva, com adjetivos como “maior” e “histórica”, performa uma visão de potência nacional, mas simplifica debates complexos sobre sustentabilidade e economia.
Saussure e a mutação dos significantes
A teoria de Ferdinand de Saussure, que distingue o significante (a forma da palavra) do significado (o conceito), é essencial para compreender o discurso trumpista.
Em frases como “Nossa fronteira será a mais segura de todos os tempos. Ninguém nunca viu nada assim” (5 de fevereiro de 2025), o significante “mais segura” é desvinculado de dados concretos, como a redução de 18% nas apreensões de migrantes no primeiro semestre de 2025, atribuída a políticas de dissuasão.
ONGs denunciam que essa retórica exacerba a xenofobia, citando mortes em operações de deportação. Aqui, o significante serve menos para descrever a realidade e mais para mobilizar emoções, evidenciando a arbitrariedade do signo saussuriano.
Outro exemplo é a declaração de 15 de março de 2025: “O Canal do Panamá será recuperado. Foi o maior roubo da história, e vamos corrigir isso”. Pronunciada em um comício na Flórida, a frase ataca a gestão do canal por Panamá e China, com base em relatórios de que 40% das rotas comerciais são controladas por empresas chinesas. Especialistas esclarecem que a China não tem jurisdição formal, mas seus investimentos em portos panamenhos preocupam o Pentágono.
O significante “roubo” transforma uma questão comercial em uma narrativa de traição, reforçando o nacionalismo trumpista.
Superlativos como arma política
O uso de superlativos é uma marca registrada de Trump. Em 30 de abril de 2025, ao anunciar um orçamento de US$ 27 bilhões para a NASA, ele afirmou: “Plantaremos a bandeira americana em Marte. Será a missão mais incrível que o mundo já viu”.
A frase compara a missão marciana (prevista para 2029) ao pouso na Lua, mas ignora cortes em programas ambientais da agência e o fato de a SpaceX ainda não ter testado foguetes para viagens tripuladas além da Lua. O superlativo “mais incrível” simplifica desafios técnicos, projetando uma imagem de liderança visionária.
Da mesma forma, em 8 de maio de 2025, durante visita à Base de Norfolk, Trump declarou: “Nunca, em nenhum momento da história, tivemos um exército tão poderoso”, celebrando o orçamento de US$ 886 bilhões para a Defesa.
A frase coincide com ataques a instalações nucleares iranianas, mas omite críticas de generais sobre a alocação desbalanceada de recursos (70% para tecnologia, 5% para salários).
Esses superlativos, na verdade, constroem uma narrativa de supremacia, mas obscurecem nuances operacionais.
Economia: fatos, exageros e desinformação
A declaração de 10 de junho de 2025, “Estamos vivendo a maior economia de todos os tempos. Nunca houve nada parecido”, reflete a mistura de fatos e exageros típica de Trump.
Ele citou o aumento de 7,5% na renda pessoal disponível e a inflação de 2,1%, dados verificáveis, mas omitiu que 80% dos novos empregos são em serviços de baixa remuneração. A frase, dita horas antes do Federal Reserve anunciar a possível demissão de Jerome Powell por “juros altos”, revela uma estratégia de apropriação de indicadores positivos e desvio de críticas.
A desinformação amplifica esse efeito: um deepfake de Trump chamando Lula de “vergonha total” em março de 2025 ilustra como a manipulação digital reforça narrativas polarizadas.
A frase “Kamala Harris é a pior vice-presidente da história. Uma catástrofe total e absoluta” (20 de junho de 2025) exemplifica a deslegitimação via hipérboles. Pronunciada em um comício no Arizona, a declaração respondeu às críticas de Harris às políticas migratórias de Trump como “desumanas”.
Pesquisas indicam que Harris tinha 38% de aprovação, abaixo de Mike Pence (42% em 2024), mas acima de Spiro Agnew (25% em 1973), desmentindo o superlativo “pior”. Essa retórica, comparada por estudos da Harvard Gazette ao estilo de Jair Bolsonaro, mobiliza a base trumpista, mas evita sanções judiciais devido ao sistema legal dos EUA.
Desinformação e a crise semântica
A era da desinformação intensifica a crise da linguagem. A repetição de superlativos como “maior” ou “pior” dessemantiza as palavras, transformando-as em significantes vazios que dependem do contexto e da intenção do locutor.
A análise da Associated Press sobre o discurso de Trump ao Congresso em 4 de março de 2025 revelou distorções em dados de imigração e economia, como a alegação de que “21 milhões de pessoas entraram ilegalmente nos EUA” nos últimos quatro anos, quando estimativas apontam 11 milhões. Essa manipulação erode a confiança na linguagem como veículo de verdade.
A agenda geopolítica de Trump, com ameaças de “recuperar” o Canal do Panamá ou dominar Marte, reflete um nacionalismo midiático mais que operacional. Frases como “O Canal do Panamá será recuperado” inflamam a base, mas carecem de viabilidade prática, dado o tratado de 1977 e a ausência de jurisdição chinesa direta.
A missão marciana, embora ambiciosa, enfrenta ceticismo técnico, mas o superlativo “mais incrível” garante impacto retórico.
Lula e a solidariedade como contraponto
Em maio de 2025, o presidente Lula, homenageado pela Academia Francesa de Letras, propôs a palavra “solidariedade” para revalorização no dicionário da instituição.
Ele argumentou que o termo, já existente, encapsula a cooperação global em crises como a pandemia e as mudanças climáticas, contrapondo o individualismo e a polarização.
Essa escolha humanista contrasta com a retórica trumpista, que privilegia o personalismo e o nacionalismo. Enquanto Trump usa superlativos para exaltar a América, Lula resgata um conceito ético, sugerindo um caminho alternativo para a linguagem política.
Os discursos de Trump em 2025, marcados por frases como “A era dourada da América começa agora” e “Estamos vivendo a maior economia de todos os tempos”, revelam uma estratégia de adjetivação superlativa que, sob a lente saussuriana, manipula significantes para projetar poder e otimismo.
Contudo, a desinformação e a polarização esvaziam os significados tradicionais, colocando a linguagem em uma encruzilhada. A proposta de Lula de revalorizar “solidariedade” oferece um contraponto ético, mas a predominância de narrativas como a de Trump sugere que a batalha pelo sentido das palavras é um desafio global.
Em um mundo onde “maior” e “pior” se tornam armas políticas, a linguagem permanece um campo de disputa, moldado por fatos, exageros e aspirações.