Opinião

Bebês reborn e o espelho social da contemporaneidade – Por Álvaro Quintão

Uma análise sobre os limites entre afeto legítimo e reconhecimento jurídico diante da popularização dos bebês hiper-realistas

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Álvaro Quintão é advogado e mestre em Ciências Jurídicas. Foi presidente da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil - Seção Rio de Janeiro (OAB/RJ) e secretário-geral da OAB/RJ. Atualmente, é sócio do escritório Quintão e Lencastre Advogados Associados.
Bebês reborn e o espelho social da contemporaneidade – Por Álvaro Quintão
Bebê reborn. Wikimedia Commons

Vivemos tempos peculiares, marcados por paradoxos profundos. Enquanto as conexões virtuais se multiplicam, a sensação de isolamento e a ausência de vínculos emocionais reais aumentam vertiginosamente. Nesse contexto, emergem fenômenos sociais que desafiam nossa compreensão tradicional de afeto e pertencimento. Um exemplo emblemático disso é a crescente popularidade dos chamados "bebês reborn": bonecas artesanais hiper-realistas, projetadas para imitar bebês humanos em detalhes impressionantes como textura de pele, peso, expressões faciais e até simulação de batimentos cardíacos.

Os bebês reborn, originalmente destinados ao público infantil como brinquedos aprimorados, encontraram rapidamente uma nova função entre adultos, especialmente em sociedades urbanas. Mulheres e homens em diversas faixas etárias adotam essas bonecas por motivos que vão muito além do entretenimento simples. Para alguns, funcionam como suporte emocional diante da solidão; para outros, como preparação ou substituto simbólico de uma parentalidade real. Há também quem as utilize como mecanismo terapêutico após perdas gestacionais ou em situações de luto profundo.

Essas práticas sociais trazem à tona uma reflexão jurídica inevitável: seria possível atribuir direitos a essas criações tão próximas da aparência humana? A resposta, do ponto de vista jurídico, é clara e contundente: não. O ordenamento jurídico brasileiro estabelece que a personalidade civil — condição necessária para ser sujeito de direitos — somente é adquirida com o nascimento com vida. Antes disso, apenas o nascituro, por sua potencialidade de vida humana, é protegido excepcionalmente pelo direito. Uma boneca, independentemente do realismo que apresenta, permanece um objeto, uma coisa, um bem passível de propriedade e regido pelas regras comerciais e de consumo.

Porém, ainda que os bebês reborn não sejam sujeitos de direitos, há obrigações jurídicas claras relacionadas à sua produção e comercialização. Artesãos, fabricantes e comerciantes dessas bonecas devem cumprir rigorosamente as normas estabelecidas pelo Código de Defesa do Consumidor, garantindo segurança, qualidade e a ausência de vícios nos produtos oferecidos. A falta de transparência na publicidade desses itens, eventualmente sugerindo propriedades curativas ou efeitos terapêuticos infundados, pode levar a sérias consequências jurídicas, tanto civis quanto penais.

Mas o que explica, afinal, a popularidade desses "bebês" tão realistas? Aqui encontramos a chave sociológica dessa questão. Em um mundo marcado pela crescente solidão institucionalizada — apontada inclusive por dados recentes do IBGE e da Fundação Seade sobre o aumento de domicílios unipessoais —, o bebê reborn surge como uma resposta rápida e prática às demandas emocionais que nossa sociedade não consegue suprir através das relações humanas convencionais.

Além disso, o fenômeno da parentalidade tardia, motivado por fatores econômicos, profissionais e pessoais, também tem papel relevante nesse contexto. As bonecas realistas passam a servir como uma espécie de ensaio emocional e prático para aqueles que ainda não se decidiram ou não puderam ter filhos biológicos. Não menos importante é o papel terapêutico desses objetos, utilizados por psicólogos e terapeutas como apoio emocional legítimo e eficaz em certos casos, especialmente no delicado período pós-perda gestacional ou durante o luto.

Contudo, é fundamental que não confundamos o plano afetivo com o jurídico. Apesar de seu uso terapêutico e emocional válido, a atribuição de personalidade ou direitos subjetivos aos bebês reborn levaria a consequências preocupantes, inclusive banalizando discussões importantes sobre infância e dignidade humana real. Simular direitos civis como prioridade em filas, licença maternidade ou mesmo registro civil para bonecos, não apenas fragiliza as instituições jurídicas, mas dilui o próprio conceito de dignidade humana, tão caro e protegido por nossa Constituição Federal.

A advocacia, especialmente no campo do Direito de Família e do Direito do Consumidor, deve ter um papel ativo nesse esclarecimento. Cabe ao advogado orientar adequadamente seus clientes sobre esses limites, impedindo litígios inúteis e evitando frustrações emocionais decorrentes da falsa expectativa de reconhecimento jurídico de vínculos impossíveis.

Portanto, embora os bebês reborn preencham espaços emocionais e afetivos legítimos na vida de muitas pessoas, precisamos reconhecer e reafirmar continuamente que a linha que separa objetos de pessoas deve permanecer clara e intransponível. Afinal, o reconhecimento da personalidade jurídica é uma conquista essencial da civilização moderna e não deve ser relativizado por mais avançadas e convincentes que sejam as técnicas artísticas ou o realismo emocional envolvido.

No fim das contas, os bebês reborn são espelhos poderosos da sociedade atual. Refletem nossos desejos mais profundos de conexão, afeto e sentido. Mas, mesmo sendo tão humanos em sua aparência e função simbólica, continuam, inexoravelmente, sendo apenas um reflexo da humanidade que projetamos sobre eles, sem nunca se tornarem sujeitos reais de direitos.

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum

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