Chegando no Peru – Por Esther Rapoport
Acho que pouca gente ouviu falar de Ayacucho e por isso não sabe da importância desta região para a história do Peru
Surgiu a oportunidade, em 2010, de participar de uma feira de turismo em Lima, Peru. Era minha primeira viagem ao Peru e adivinhe para onde fui após a feira? Para onde você iria na sua primeira viagem ao Peru??
Certamente todo mundo pensou a mesma coisa: Ayacucho!
Pois é, não sou uma turista típica e deixei Cuzco e Machu Pichu para a segunda viagem ao Peru.
Acho que pouca gente ouviu falar de Ayacucho e por isso não sabe da importância desta região para a história do Peru.
Em ordem cronológica: fica aí a caverna de Pikimachay onde foram encontrados os vestígios mais antigos de ocupação humana no Peru, datada de 12.000 aC.
Mais adiante, entre 500 e 1.100 dC. aqui se estabeleceu a sede do Império Wari, o primeiro império andino, pré-incaico, que desenvolveu alta produção de cerâmicas, tecidos, metais e tecnologia para entalhe e corte de pedras, dando as bases culturais e materiais para os Incas, cujo império veio depois e foi muito mais curto (de aprox. 1.200 a 1.500 dC.).
As ruínas da cidade Wari se espalham por uma vasta área e tem muito ainda para desenterrar. Vi também parte deste centro arqueológico destruído por construções modernas, algumas áreas bem descuidadas e sem proteção ou estrutura para o turismo, muito diferente do que deve ser Machu Pichu.
Tem mais história: no período colonial, em 1540, os espanhóis fundaram a cidade de Ayacucho (em pleno centro de Ayacucho ....) como ponto de descanso para a viagem entre Lima e Cuzco.
E depois, foi aqui que rolou a última batalha terrestre das guerras de independência hispano-americanas e o final do domínio espanhol na América do Sul. Em 9 de dezembro de 1824 os patriotas venceram os realistas na Pampa de Ayacucho e declararam a independência e o final do Vice-reinado do Peru.
Agora, o que talvez você lembre, porque é história recente, é que esta região foi o palco da guerra entre o Exército peruano e o grupo guerrilheiro Sendero Luminoso, que começou em 1980 e só acabou 20 anos depois, no ano 2000, deixando um rastro de sangue num dos confrontos mais cruéis da América Latina.
Abimael Guzman era professor de filosofia na Universidade de Ayacucho, a segunda universidade peruana, e a partir dos anos 70 do século passado começa a organizar a formação de um grupo de luta armado, de linha maoísta.
Não pretendo fazer nenhuma análise do processo da guerrilha peruana, mas apenas destacar que foram anos de tanta repressão e violência que esta terra ficou marcada como perigosa e à margem do circuito turístico tradicional, abandonada pelo marketing do Ministério do Turismo peruano, e exatamente por isso manteve toda sua autenticidade.
Cheguei na cidade sede da província de Ayacucho, conhecida como Huamanga, a 2.700 metros de altitude, num sábado à tarde.
No domingo fui visitar um vilarejo chamado Huanta, para visitar uma feira que acontece todos os domingos. Agora estou falando de feira normal, de frutas e legumes, mas esta tem uma coisa especial. As camponesas vêm logo cedo da montanha, carregadas com seus produtos, em geral grãos e raízes, para trocar com as “cholas” da cidade, por outros produtos.
Elas ficam todas agachadinhas, com suas saias super rodadas e chapéus de feltro preto cheio de flores de plástico, negociando baixinho, em quechua. Acertam seus preços com gestos e olhares, tipo assim: “este milho vale mais algumas batatas, passa para cá ....” E não gostam de uma máquina fotográfica, quando vêm uma, se escondem e abaixam a cabeça.
Assisti a troca de milho por batatas, grãos por refrigerantes, batatas por ovos, e outras raízes que eu não conheço. Escambo mesmo. Toda a mercadoria comprada vai sendo colocada (sem nenhum saquinho de plástico, bem entendido) em um manto que elas dobram e penduram nas costas como uma sacola, para caminhar até a próxima “chola” sentada. Não tem aqui aquele burburinho das nossas feiras, ninguém anuncia nada, cada um vai e troca ou eventualmente compra o que precisa, sem gritos. Foi uma experiência muito original, sem a presença de nenhum outro turista.
Mas como tudo tem dois lados, o rústico, intocado, autêntico, tem seu charme, mas tem lá os seus incômodos também. Por exemplo, a informação. Não peça nenhuma, não vale a pena, a resposta não serve nunca. Algumas tarefas são praticamente impossíveis de serem executadas por um estrangeiro.
Um exemplo: tente fazer uma ligação telefônica (local ou interurbana) de uma cabine pública em Ayacucho, que eles chamam de Locutório. Vão te perguntar se é fixo ou celular, se é Movistar ou Claro. Mas não importa, você não vai conseguir completar a chamada. Uns dizem que tem que digitar 9 antes, outros dizem 0, outros dizem que não precisa digitar nada, digite o que você quiser e pode tentar até do hotel, no quarto ou da recepção, não vai conseguir. Um estrangeiro não vai nunca conseguir usar um telefone peruano.
Outra coisa me chamou a atenção em Ayacucho: o roubo do patrimônio. No Museu de Arqueologia de Huamanga tinha uma vitrine vazia, com um cartaz dizendo que dali tinham sido roubadas 3 peças pré-incaicas, em prata e pedra preciosa. Pelo fato da vitrine não estar quebrada, parece que o ladrão tinha a chave. Curioso ....
Mas mais gritante ainda é o que vimos na Catedral de Huamanga. Sabe aquela cerâmica típica do Peru, que tem uma igreja cujas torres de forma caricatural viram para fora, desalinhadas com o corpo da igreja? Pois é a representação desta Catedral e é produzida na vila vizinha, chamada Quinua, grande produtora de cerâmica.
La descobri uma coisa super curiosa. Esta cerâmica que reproduz a catedral não é um objeto feito para ser vendido ao turista. Fazendo uma foto da cidade percebi que tinha uma igreja dessas cimentada no teto de uma casa. Olhei na casa ao lado, e tinha também, e na outra, na outra e na outra, e em todos os telhados de todas as casas tinham igrejinhas cimentadas. E me explicaram que quando acaba a construção de uma casa, é feita uma festa e cimentada uma dessas igrejinhas no alto, para proteger a família. Lindo! Fiquei alucinada tentando fotografar todas.
Mas eu ia contar outra coisa. Que a Catedral de verdade tem cinco altares grandiosos, enormes, imponentes e todos revestidos de folha de ouro.
Mas quando o olhar vai baixando do alto para o chão, surpresa, na parte mais baixa dos altares, abaixo de um metro, aparece a madeira crua porque a o ouro foi raspado!!! Estão roubando este ouro assim, aos poucos .... Ninguém viu nada, ninguém sabe de nada.
E como a catedral só abre das 17 às 19 horas, que passa o resto do dia fechada, acho que o trabalho de raspar este ouro acontece durante o horário comercial. Quem será que faz isso??
Enquanto vocês pensam e procuram uma resposta, vou jantar e volto depois para contar o resto da viagem.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum