OPINIÃO

Autodesa e linchamento: as duas mortes de Beto Freitas - Por Fábio Dal Molin

Quatro anos de sua execução sem sequer ter havido julgamento, tal como Antígona emparedada, Beto Freitas tem sua segunda morte sem assassinato

João Alberto Silveira Freitas, 40 anos, morto no Carrefour na noite de 19/11/2020.Créditos: Arquivo Pessoal
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"Soberana é a esfera na qual se pode matar sem cometer homicídio e sem celebrar um sacrifício, e sacra, isto é, matável e insacrificável, é a vida que foi capturada nesta esfera". (Agamben 2007, p .28)

Em 19 de novembro de 2020, João Alberto Silveira Freitas, homem negro, pai de família, morador do bairro Passo D'areia, foi brutalmente espancado por seguranças e teve o corpo imobilizado por um deles, com o joelho em seu peito, vindo a falecer por asfixia no estacionamento do supermercado Carrefour, em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil. No dia seguinte, data comemorativa da Consciência Negra no Brasil, a Rede Carrefour foi alvo de protestos no Brasil inteiro e o ato teve repercussão mundial.

Seis meses antes, na cidade de Minneapolis, Minessota, Estados Unidos, acusado de tentar trocar uma nota falsa de 20 dólares, George Floyd, homem negro da mesma estatura que Freitas, foi imobilizado por um policial com o joelho em seu pescoço por 8 minutos, também vindo a falecer. O ato teve repercussão mundial.

No dia 3 de março de 1991, em Los Angeles, Rodney King, um jovem trabalhador afroamericano de 26 anos, foi interceptado por três viaturas e um helicóptero da polícia que o perseguiam por excesso de velocidade. Ao se recusar a sair do veículo, foi ameaçado com uma arma de fogo apontada para seu rosto. Alguns segundos depois, ele obedeceu e se deitou no chão; sofreu muitos golpes com uma arma de eletrochoque. O ato foi filmado em uma câmera de VHS por um morador do bairro, os agressores foram inocentados por legítima defesa e o ato desencadeou uma série de revoltas nos Estados Unidos.

Estamos diante de uma prática de mais de 200 anos surgida na América colonial escravocrata: o linchamento.

Assim termina a vida

Ao fim e ao cabo, como muitos fatos de grande repercussão nas mídias algorítmicas, o desfecho do inquérito de Beto Freitas terminou por indiciar seis pessoas envolvidas. As matérias, que no primeiro dia colocavam Beto apenas como “homem”, incluíram a palavra “negro” e a seus algozes “brancos”. Segundo o G1: “Cidadão negro foi morto após ser espancado por dois seguranças brancos’, no dia 19 de novembro. Inquérito concluiu que houve exagero nas agressões e a delegada citou 'racismo estrutural' para justificar desfecho da confusão no supermercado. Morte ocorreu por asfixia.”

É notável que a delegada não tenha incluído na denúncia o crime de racismo, mas tenha citado o racismo estrutural. O próprio Silvio Almeida, em uma entrevista, comprova a ideia do racismo estrutural como o Real Lacaniano, aquilo que não “cessa de não se escrever”. O racismo como algo que está como a fita de Moebius, em um dos lados um homem negro sendo assassinado com grande violência espetacular por motivo fútil e, no outro, não há provas materiais de injúria racial ou discriminação. Os lados giram e se torcem, virando uma única superfície. Vamos ser explícitos e isso foi dito textualmente pela delegada: todos nós sabemos que a violência do crime tem motivações raciais, mas sempre vence a tese não comprovada de que se Beto fosse branco isso não teria acontecido. A ideia do Estado de Exceção de Agamben está bem configurada aqui, pois uma representante do poder policial e jurídico do Estado reconheceu que a motivação do crime, bem como sua tipificação, está fora do ordenamento jurídico. É como se Beto não tivesse sido morto, uma vida não assassinável, Homo Sacer (Agamben, 1999).

Quem entende um pouco de polícia, segurança e defesa pessoal sabe que um trabalhador bem treinado deveria saber lidar com esse tipo de situação com estratégia. As empresas de segurança privada são terceirizadas pelos clientes, e quarteirizam a formação e reciclagem dos trabalhadores. Os cursos de reciclagem acontecem por lei a cada dois anos, ou seja, é de cunho pessoal do trabalhador treinar defesa pessoal e uso da força para imobilizar 

Em uma nota em seu site, a empresa de segurança patrimonial Vector, informou que  nenhum dos agressores de Beto era vigilante, ou seja, encarregados de algum tipo de contenção física, ambos eram fiscais de perdas. A mulher que coordenou a ação era fiscal de operadores de caixa. Nenhum item dos procedimentos de segurança e técnicas de defesa pessoal foi observado. Pelos princípios do Krav Magá, a principal técnica de defesa pessoal atualmente usada nos cursos de formação, no momento em que Beto desferiu o soco, o segurança deveria ter reflexos para bloquear, ou se esquivar, e imediatamente desferir um chute nos testículos e colocar as mãos na traqueia. Isso faria Beto cair no chão, ou inclinar a cabeça para frente, o segurança seguraria sua cabeça, aplicaria uma rasteira e posteriormente pressionaria o crânio contra o solo.

Isso neutralizaria Beto com pouca força e dano físico. Outra opção seria manter distância, não revidar e aguardar o apoio, Beto seria contido pelo grupo e isolado. Como oficialmente os seguranças possuem capacitação em segurança eletrônica e direito, saberiam que nos dois casos poderiam alegar legítima defesa, Beto hoje estaria vivo e preso por agressão. O restante da luta, quando os dois homens fizeram um enorme esforço para derrubá-lo, e nem um dos mais de 20 socos desferidos no seu rosto não provocaram fraturas graves, é possível perceber a ausência de qualquer treinamento marcial. De toda forma, Beto seria vítima de racismo, pois mesmo que a cena terminasse ainda na caixa, por ser um homem negro, sabemos que nesse caso é comum ser constantemente seguido pelos seguranças e câmeras. Em um processo legal jamais teria atenuantes em sua conduta, na cruel realidade foi brutalmente linchado por agressores cujos corpos não guardavam nenhum tipo de sentimento além de ódio.

A prova foi a frase “sem cena” ou a justificativa corporativa de que ele havia agredido verbalmente uma operadora de caixa, sinal que a equipe em questão formou uma massa linchadora  que o julgou e o condenou, impedindo qualquer ajuda. A expressão “sem cena” é discutida por Fanon (1952/2020) em um exemplo do tratamento dado aos negros na França pelos médicos, que recebem os brancos com reverência e os negros com expressão do tipo “então você está doente, rapaz”. A morte de Beto não se deu por tiro ou golpe certeiro, as câmeras mostram seu pedido de ajuda e sua agonia enquanto um joelho pressionou seu pulmão até a morte, como outro joelho o fez meses antes com George Floyd.

Vamos imaginar o contrário: e se Beto dominasse técnicas de defesa pessoal? Aqui chegamos a um ponto limítrofe de espelhamento, pois alguém com experiência e prática não teria se exposto a tal situação de atacar primeiro sem ser fisicamente atacado, e seu soco teria destino certeiro e derrubaria o segurança. Até o momento desta escrita não sabemos o que o motivou a tal atitude, mas vamos imaginar que após o soco Beto conseguisse se livrar dos agressores. A reação da equipe seria ainda mais agressiva ou talvez a polícia teria tempo de chegar, Beto estaria respondendo a um processo, ou igualmente morto por arma de fogo. De qualquer maneira, a sina de quem está na posição de homem negro de periferia no Brasil é inexorável:

“O menor gesto de defesa e proteção, o menor movimento de preservação e conservação de si é posto a serviço do próprio aniquilamento do corpo. Esse poder que se exerce com foco na potência do sujeito, manifestada nos impulsos de defesa da vida e também como de si mesmo, constitui a autodefesa como expressão da vida corporal, como aquilo que constitui um sujeito, “aquilo que constitui uma vida (...) Aqui, a potência de agir, muito mais do que o corpo em si, torna-se claramente o que define e, simultaneamente, o que chama para si o poder. Esse governo defensivo esgota, preserva, cura, estimula e mata de acordo com uma mecânica complexa.

Ele defende certas pessoas e deixa outras sem defesa, conforme uma escala sabiamente graduada. Aqui, estar sem defesa não significa “não poder mais exercer poder”, mas experimentar uma potência de agir que não é mais um movimento polarizado. Não há risco de vida maior do que esse tipo de situação, quando a potência de agir se converte em reflexo autoimune. Não se trata mais apenas de dificultar diretamente a ação das minorias, como na repressão soberana, nem de simplesmente deixá-las morrer, sem defesa, como ocorre no âmbito do biopoder. Trata-se de levar determinados sujeitos a se aniquilar como sujeitos, de incentivar sua potência de agir para melhor estimulá-los, adestrá-los para a própria perda. Produzir seres que, quanto mais se defendem, mais se desgastam”. (Dorlin, 2019 p. 14)

“Ora, em geral, eram grupos de vigilantes filiados a associações racistas brancas, que escamoteavam o curso "normal" do processo judicial e ofereciam à multidão o direito de punir os homens indefesos". (Dorlin, 2018, p.183)

Na condição de exceção, é dado ao Estado o poder de politização da vida, o que Michel Foucault chamou de biopoder, e a condição de criar sujeitos matáveis, porém, fora da condição de assassinados, violentados sem crime.

Em 23 de julho de 2024 o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul afastou a qualificação da morte de Beto Freitas por motivo torpe, ou seja, não considera sua morte como resultante de racismo ou preconceito de classe. Após quatro anos de sua execução sem sequer ter havido julgamento, tal como Antígona emparedada, Beto Freitas tem sua segunda morte sem assassinato.

*Fábio Dal Molin é psicólogo, psicanalista, professor da FURG, Pós-doutorando do PPG em Psicanálise, Clínica e Cultura da UFRGS, professor de defesa pessoal coordenador do projeto de extensão “Corpo, ética, autodefesa: uma filosofia da resistência” e Coletivo Rosa dos Ventos

@b.dalmolin @autodefesa2024

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