OPINIÃO

A desmedida, a ansiedade climática e a saúde mental na tragédia do capitalismo

Em épocas e contextos em que não há necessidade de correr ou lutar pela sobrevivência, a ansiedade é experimentada como patologia

Ponte sobre o Arroio Diluvio, no Rio Grande do Sul.Créditos: Fabio Dal Molin/Arquivo Pessoal
Escrito en OPINIÃO el

Prólogo: somos nossa própria tragédia

A ansiedade é um sintoma que decorre de uma reação natural do corpo ao perigo real para luta e fuga, como situações de batalha ou de sobrevivência ao ataque de animais. 

Em épocas e contextos em que não há necessidade de correr ou lutar pela sobrevivência, a ansiedade é experimentada como patologia, do grego páthos, que significa ser atingido, que deriva para paixão no sentido de sofrimento extremo, desmedido, e por isso que chamamos o suplício ao qual Jesus Cristo foi submetido de “paixão”.

Jesus Cristo é um herói trágico. Os gregos foram pródigos em produzir tragédias em sua literatura, afinal, o mais famoso da humanidade esteve exposto a terremotos, maremotos, pragas, guerras  e atividades vulcânicas ao longo dos séculos de sua prolífica história. A tragédia grega mais famosa e significativa aqui nesta análise é o “Édipo-Rei” de Sófocles, escrita ao redor do ano 427 A.C. As tragédias eram as manifestações teatrais inspiradas na mitologia e tinham por característica o caráter de inevitabilidade da vontade divina e da morte, além de um conceito fundamental na filosofia e na literatura gregas chamado de Hybris, a desmedida.

A Hybris parece definir exatamente o que a chamada tragédia das enchentes do Rio Grande do Sul: Termo de o “arrogância funesta ou orgulho”, ou seja, apesar dos incontáveis avisos, a Hybris é o que leva o herói a agir de tal forma, que provoca e desperta a ira dos deuses. O herói trágico Édipo, ao saber da profecia que diria que ele mataria seu pai e teria uma prole maldita com sua mãe, no retorno do Oráculo de Delphos  resolve não ir a Corinto, mas a Tebas, e é justamente neste caminho que encontra Laios, e, em um rompante de ódio desmedido, o assassina e a mais 3 soldados.

Ao chegar a Tebas, desvenda sem pensar o enigma da Esfinge sem perceber que na solução do enigma está seu nome, o homem,  que ao meio dia anda com os dois pés “di-pous”, (por ter sido pendurado pelos tornozelos, os reis de Corinto decidem chamar-lhe Oi-dipous, pés inchados). Após desposar Jocasta e reinar vários anos, uma praga devasta seu reino, e seu cunhado Creonte retorna do Oráculo com a solução: “há um assassino em seu reino, e para acabar com a praga ele deve ser encontrado e punido”. Édipo, então, dá início a uma desmedida busca por tal assassino, onde desmedidamente entra em guerra com seus companheiros mais fiéis, Creonte, Tirésias e Jocasta para descobrir, enfim, que o assassino era ele mesmo.

Após uma semana inteira de chuvas torrenciais e de acompanhar com muita ansiedade a devastação da serra gaúcha pelos leitos dos rios Jacuí, Taquari-Antas e Caí, quando as cidades dos meus ancestrais Muçum, Putinga e a Serra do Rio as Antas viraram lama, eu fui ao centro de Porto Alegre comprar carne no Mercado Público. No caminho senti um certo mal estar  que parecia não caber em minha percepção,  as águas do Guaíba avançavam em lugares onde eu, que moro aqui desde que nasci, jamais havia visto, a rodoviária, a rua Voluntários da Pátria, a avenida Julio de Castilhos.

Após fazer minha compra, falei ao açougueiro em tom nervoso de brincadeira, que o mundo estava acabando. Ele pareceu levar a sério, e me apontou para o chão, onde havia uma tampa de bueiro fechada e disse “já olhamos ali, e já está transbordando”. Pouco mais de uma hora depois as águas invadiram todo o Centro Histórico, onde estão ainda dez dias depois, assim como um terço de Porto Alegre. No dia seguinte, no Uber, transitei pelo Arroio Dilúvio, um rio canalisado que  conduz esgoto pluvial ao Guaíba, e novamente a sensação da Hybris invadiu minha alma, pela primeira vez em 49 anos eu vi as águas do arroio empoçadas, imóveis, como se alguma força divina as bloqueasse em sua foz. E ali estavam elas, a arrogância, a ganância, a ignorância de quem joga suas fezes e suas angústias na água que bebe. A ira dos deuses caiu pesada e cruel sobre um estado inteiro.

A tragédia e a ansiedade

 Quando a psicologia clínica surgiu, e podemos marcar isso com Freud, que teve como ato mais genial e original trazer a tragédia grega e a Hybris para a fria neurologia recém nascida do século XIX. Naquela época a   Europa vivia muitas catástrofes através das guerras, das pragas e dos eventos climáticos,  além,  é claro, da grande desigualdade social e de gênero. No início da psicanálise a grande maioria dos pacientes eram mulheres que sofriam com a brutal dominação masculina e os traumatizados de guerra.

 Freud, ao longo de sua vida, viu três grandes guerras, e muitos de seus pacientes eram jovens que viviam em uma sociedade aparentemente civilizada e que experimentavam os horrores da guerra, assassinato, canibalismo,  tortura, combates, e depois eram obrigados a retornar a suposta " normalidade" da vida social. Freud percebeu que muitos dos sintomas eram canalizações dessa grande ansiedade , que em alemão é Angst  que pode denotar medo e sensação de estrangulamento.

No fim da segunda guerra mundial na Europa e nos EUA a ansiedade virou uma epidemia  que levou os países centrais a uma onda de políticas de saúde mental coletivas para poder manter a população economicamente ativa produtiva e reconstruir o mundo capitalista pós guerra.

Foi nessa época que a psicologia, a psicanálise e a psiquiatria  ganharam importância e relevância que tem hoje, além das medicações psiquiátricas. 

As catástrofes climáticas são situações extremas semelhantes à das guerras. Isso pode ser chamado de ansiedade climática. É a reação psíquica e fisiológica a situações traumáticas extremas.

A psicologia é um campo de atuação bastante complexo e  heterogêneo e a psicologia das emergências e desastres é um campo relativamente recente,  apesar de , como eu disse antes , a psicologia e  a ideia de saúde mental coletiva ter se difundido largamente no mundo justamente a partir das catástrofes da guerra.

É importante considerar que desde a constituição de 1988 o Brasil  através de um grande movimento de trabalhadores e trabalhadoras de saúde mental , elaborou uma das mais sofisticadas políticas de atenção e cuidado a saúde mental do mundo.A política antimanicomial, para além de combater holocausto dos asilos, desenvolveu um sistema bastante elaborado de serviços substitutivo, cuidados em redes e territórios e também de conceitos e práticas de saúde mental coletiva.

Assim como estamos vendo na atual tragédia climática, os fatores políticos e sociológicos são fundamentais na melhoria da vida mental coletiva . O paradoxo brasileiro é que a constituição de 1988 coloca o estado e a sociedade como protagonistas das políticas públicas, mas os modelos de gestão do Estado foram na direção contrária,  a do neoliberalismo  como gestao do sofrimento psiquico e do individualismo.

Neste momento o que podemos fazer como profissionais é mais importante que podemos fazer como cidadãos,  acolher, abraçar, chorar junto e alcançar roupas, comida, cobertores água, oferecer abrigo. 

Eu acredito que a psicologia e  a psiquiatria podem ajudar muito no grande número de pessoas diagnosticadas com transtornos graves e que precisam de manejo encaminhamento e medicações específicas. E aí está o problema pois os últimos governos sucatearam o embrião da política de saúde mental e as chuvas destruíram o restante.

Resumindo,  o mundo precisa se livrar do neoliberalismo e do capitalismo, afinal, como diz Mark Fischer, “é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo” frase célebre incrementada por Slavoj Zizek em seu livro “Vivendo no fim dos tempos”, onde o filósofo coloca que o mundo já acabou, e que vivemos as cinco fases do luto formuladas pela psiquiatra suíça Elizabeth Kubler-Ross: negação, raiva, barganha, aceitação, depressão, que, para encerrar ,parafraseio aqui na tragédia gaúcha:

"" O mais importante é tirar a esquerda do poder " ( raiva )

" ah mas sempre foi assim, é a natureza" ( aceitação)

" a questão ambiental não pode afetar a economia” ( barganha )

" essa ideia de que teremos que evacuar as populações perto da água é paranoia, coisa ee ficção científica, isso vai demorar muito para acontecer ( negação)

“Cidades inteiras totalmente alagadas e destruídas pela terceira vez seguida, falta de combustível alimentos pontes destruídas, suspensão de todas as atividades econômicas” (depressão)

*Por Fábio Dal Molin, psicólogo, professor da FURG e pós-doutorando em Psicanálise, Clínica e Cultura da UFRGS. @b.dalmolin @autodefesa2024

Reporte Error
Comunicar erro Encontrou um erro na matéria? Ajude-nos a melhorar