De LISBOA | O resultado das eleições legislativas de Portugal, realizadas no domingo (10), não trouxe um cenário muito diferente do que já era previsto nas pesquisas de intenção de voto. Para além da margem minúscula que separou o vencedor (a AD, coalizão formada pelo PSD e pela CDS-PP, de centro-direita), que teve 29,49% dos votos, do segundo colocado, o PS, de centro-esquerda, que obteve 28,66% da preferência do eleitorado, um fiapo de apenas 0,83% impedindo um empate entre os dois gigantes políticos, nada de ‘anormal’ ocorreu tendo em vista os números apresentados nas sondagens. No entanto, foi a confirmação do terceiro lugar que assustou o país, a Europa e o resto do mundo.
O Chega, um partido de extrema direita capitaneado por um ex-comentarista de futebol bufão e agressivo que atende pelo nome de André Ventura (e que adora ser referido pela alcunha de ‘Bolsonaro português), atingiu 18% dos votos totais e levou para a Assembleia da República 48 deputados. Isso representa um resultado quadruplicado se comparado com as últimas eleições legislativas, de 2022, ocasião em que a legenda fez 12 cadeiras.
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À primeira vista, a reação de todos é a mesma de quando resultados semelhantes ocorreram em outros países da Europa, ou mesmo das Américas, em que pese o fato de os sistemas presidencialistas adotados pelo continente imporem uma disputa eleitoral em formato um pouco distinto do parlamentarismo dominante no Velho Mundo. Todos veem como uma onda ‘natural’, alimentada pelo ressentimento e por uma incapacidade de os grupos políticos tradicionais resolverem questões que são caras à população, abrindo porta para um populismo grotesco que propõe infantilmente soluções simples para problemas muito complexos. Mas não foi só isso.
Ver oficialmente que um em cada cinco portugueses saiu de casa para levar essa turba que só grita e faz ameaças ao poder é a constatação de um fenômeno que pode ser explicado por meio de uma reflexão feita pelo escritor português José Saramago, que originalmente não tinha relação com o universo político, mas que serve de analogia perfeita. Numa coletânea de discursos, pensamentos e entrevistas publicada em 2021 do vencedor do Nobel de Literatura de 1998, que faleceu em 2010, uma fala sobre o significado das coisas e o sentido que as palavras dão à realidade, que inclusive foi repetida e explicada na participação de Saramago no programa Roda Viva, da TV Cultura, em 2003, chama a atenção e é chave para entendermos que o buraco é bem mais embaixo.
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Certa vez, no contexto da semântica, e fazendo uma ponte com sua mudança de rumos na produção de seus romances, Saramago falou sobre estátuas. “O que é a estátua? A estátua é a superfície da pedra, o resultado de retirar pedra da pedra. Descrever a estátua, o rosto, o gesto, as roupagens, a figura, é descrever o exterior da pedra. Mas por dentro, a estátua segue sendo pedra”, disse.
Achar que todo esse fenômeno da extrema direita é resumível ao descontentamento, ou à aceitação dos apelos em linguagem simples, é subestimar a coisa, assim como passar pano para algo que segue, em essência, ameaça o convívio social civilizado. Chamamos de “estátua” o que vemos por fora, o produto final, esteticamente falando, que é essa disrupção barulhenta das tais camadas de eleitores que abraçam essa "onda". Só que por dentro, a “estátua” segue sendo “pedra”, ou seja, ódio, racismo, xenofobia, violência e ausência absoluta de posturas civilizatórias mínimas.
Se com 12 deputados na Assembleia da República, com Ventura no timão, o Chega já provocava tensão, constrangimento, medo e confusão nas sessões parlamentares, assim como nas discussões próprias do parlamento numa democracia. Com 48, a coisa ficará muito mais complicada. São temerários os tempos políticos que podem estar começando em Portugal, justo no ano em que a Revolução dos Cravos, que pôs fim à mais longeva ditadura do ocidente no século XX, completa 50 anos no 25 de abril.
Um governo ainda não está formado, embora isso deva acontecer num formato de “governo de minoria”, uma vez que a AD “ganhou, mas não levou”, em termos de maioria, e segue insistindo num “cordão sanitário” para isolar a extrema direita, não dando a menor chance para a formação de uma coalizão. A impressão é reforçada pelo fato de o PS ter aceitado a derrota sem rodeios, ainda que muitíssimo apertada, e já ter se colocado como oposição. O que assusta mesmo, e seguirá causando apreensão nos próximos meses, é a postura que tomará a gigante bancada de desajustados raivosos que todos os dias ocupará os assentos no parlamento de uma democracia europeia moderna que até pouco tempo atrás era vista como uma das mais sólidas e estáveis do continente.