Opinião

Cláudia Leite, Leo Lins e o lugar da censura na democracia – Por Rodrigo Perez

Antes de discutir as especificidades dos dois casos, precisamos estar atentos para o fato de que na democracia o direito à liberdade de expressão não é absoluto

Escrito em Opinião el
Nasceu no Rio de Janeiro em 30/01/1986, é historiador, tendo se formado na educação pública das primeiras letras ao doutorado. Vivendo em Salvador desde 2017, onde atua como professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia, o autor pesquisa a história do pensamento político brasileiro e os usos do passado no texto historiográfico e nas narrativas políticas, temas que foram explorados nos livros “As armas e as letras: a Guerra do Paraguai na memória oficial do Exército brasileiro”, publicado pela editora Multifoco em 2013, e “Conversas sobre o Brasil: ensaios de síntese histórica”, pela editora autografia em 2017.
Cláudia Leite, Leo Lins e o lugar da censura na democracia – Por Rodrigo Perez
Reprodução de vídeo

Temas como os limites éticos das representações artísticas e a liberdade de expressão estão na ordem do dia. Não precisa forçar muito a memória para lembrar de personalidades públicas que passaram por crises de reputação e tiveram problemas com a justiça por declarações e comportamentos considerados controversos. Destaco os casos da cantora baiana Claudia Leite e do humorista carioca Leo Lins.

Em fevereiro de 2024, viralizou na internet um vídeo de um show realizado em 2014, onde Claudia Leite modifica a letra da música “Caranguejo”, trocando “Iemanjá” por “Rei Yeshua”, o que foi interpretado pelo Ministério Público e por parte da opinião pública como um ato de “racismo religioso”. O MP chegou a abrir investigação contra a cantora, ação que posteriormente foi convertida em procedimento administrativo. A artista e seus apoiadores argumentaram que a performance não passou de livre manifestação religiosa e que tentativa de criminalização configurava ato de censura, algo incompatível com a democracia.

Já há algum tempo, Leo Lins é conhecido pelas piadas que abordam temas como deficiência física, pedofilia e escravidão, sempre no sentido de expor grupos sociais historicamente vulnerabilizados. Em junho de 2025, o humorista foi condenado a mais de oito anos de prisão, além de ser punido com uma multa de dois milhões de reais. A condenação dividiu opiniões e parte da classe artística (sobretudo os humoristas) saiu em defesa de Leo Lins, argumentando que o humor standup seria uma representação ficcional, onde o humorista estaria interpretando um personagem. Portanto, punir o humorista por sua piada seria equivalente a punir um ator por falas e comportamentos criminosos de seu personagem.

Antes de discutir as especificidades dos dois casos, precisamos estar atentos para o fato de que na democracia o direito à liberdade de expressão não é absoluto. Definitivamente, a democracia não é o regime da liberdade irrestrita, e não poderia mesmo ser. Somente na tirania tudo é permitido, mas apenas para o tirano e para os seus amigos.  A censura, portanto, é algo que faz, sim, parte da convivência democrática, basta observar as classificações indicativas de shows, filmes e peças de teatro. Quem fala em público não pode falar qualquer coisa. A diferença é que na tirania a censura responde apenas aos interesses do tirano, enquanto na democracia deve atender aos interesses coletivos instituídos em legislação prévia, elaborada pelos representantes do povo. Porém, isso não significa que na democracia não possam existir abusos.

“Abuso”. É o termo adequado para avaliar o que aconteceu com Claudia Leite. Vivemos um momento de necessário acerto de contas com os traumas que atravessam a história nacional, especialmente a escravidão. Essa incessante busca pela reparação está reconfigurando as relações de poder no país, interferindo nas decisões tomadas pelo poder judiciário e, não raro, resultando em excessos e abusos. Claudia Leite não foi a primeira artista a mudar a letra de uma música em um show, e isso pode acontecer por diversos motivos. No caso específico da cantora baiana tratou-se do interesse de demarcar suas convicções religiosas e isso, por si só, não significa racismo, assim como as imagens cristãs mobilizadas pelos carnavalescos em suas alegorias não constituem crime de intolerância religiosa. Aqui, estamos no campo da liberdade de expressão artística e as instituições precisam ser independentes o suficiente para resistir aos excessos dos ativismos. Os militantes que, supostamente, representam minorias não são infalíveis e podem, sim, ser contrariados, pois nenhuma condição de existência garante o monopólio da virtude.

Já com Leo Lins, a situação é bastante diferente. Podemos até discutir a dosimetria da pena, mas basta ter estômago para assistir cinco minutos de alguma de suas apresentações para constatar como o humorista violenta a legislação brasileira naquilo que se refere à proteção das minorias. E não, a performance standup não está no registro da representação ficcional. Neste tipo de apresentação, o humorista não está interpretando um personagem, não está elaborando no plano da imaginação uma realidade que não existe. O público não assiste ao show de Leo Lins tal como lê “Lolita”, de Vladimir Nabokov. Leo Lins não é o Humbert Humbert. O standup está mais próximo da crônica, entendida como relato da realidade fáctica, do que da representação ficcional. O humorista de standup está no palco portando o seu próprio CPF e se, deliberada e repetidamente, ele ativa comportamentos criminosos em seu público deve, sim, ser responsabilizado. Na democracia, insisto, a liberdade de expressão não é um valor absoluto

Colocar Claudia Leite e Leo Lins no mesmo lugar, portanto, é erro grave que compromete a devida proteção das minorias sociais. Quem confunde liberdade de expressão com crime de ódio acaba confundindo crime de ódio com liberdade de expressão e isso é tudo que os verdadeiros criminosos desejam.

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.

Logo Forum