BELCHIOR

Comentário a respeito de Belchior comentando John Lennon

Sempre achei que a canção do cearense que se tornou exaltação era, na verdade e na origem, um basta às pregações do ex-Beatle

Belchior e John Lennon.Créditos: Divulgação/Reprodução/Montagem
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Belchior lançou a canção “Comentário a respeito de John”, parceria sua com José Luis Penna, de 1979, portanto um ano antes de John Lennon ser assassinado. A canção, um dos grandes sucessos da carreira do cantor e compositor cearense, faz parte do Álbum “Belchior ou era uma vez um homem e seu tempo”.

Fã irremediável dos Beatles, e particularmente de Lennon, desde sempre, lembro bem a primeira vez que ouvi “Comentário a respeito de John”. Seus primeiros versos me tocaram profundamente de uma maneira irônica e confusa: “Saia do meu caminho, eu prefiro andar sozinho, deixe que eu decida a minha vida.”

Lennon era uma espécie de guru. Ele e sua esposa, Yoko Ono, viviam às voltas com canções de protestos, campanhas publicitárias pela paz entre outros arroubos. Eram a transição perfeita para quem passava da adolescência para a fase adulta de maneira sólida e militante. Deixávamos as tolas canções de amor de Paul McCartney para trás e nos embrenhávamos pelos manifestos de Lennon e Cia.

A coisa assumiu tal proporção em um certo período que muitos de nós não dávamos um passo sem consultar o oráculo liderado pelo ex-Beatle, com direito a participações de Raul Seixas e congêneres. Era preciso abandonar a fama, aprender a fazer pão e revolução, “a mulher é o negro do mundo” e por aí afora. A coisa empapuçou de tal maneira que o grito em forma de canto de Belchior parecia a palavra de ordem adequada: “deixe que eu decida a minha vida.”

Ninguém concorda comigo

Conversei com inúmeras pessoas ao longo da vida sobre a canção e nunca, ninguém jamais teve a mesma interpretação que eu, ao menos que me lembre. Todos, sem exceção, preferem achar que se trata mesmo de mais uma ode laudatória a Lennon e ponto final.

Logo adiante, Belchior cita o famoso verso do ex-Beatle, da canção “Happiness is a warm gun”: “John, eu não esqueço, A felicidade é uma arma quente.” Imaginava (e imagino ate hoje) aqueles versos explodindo “pelos muros do país”, coisa tão em moda naquele final da década de 70, início dos 80. Os tuítes da época.

No ano seguinte, Lennon foi baleado por um imbecil sem o menor motivo para tal, causando uma comoção mundial. Lembro bem de Belchior – que me parecia um tanto constrangido – recantando em todas os programas de TV do Brasil o seu “Comentário a respeito de John”. A canção tomou a partir de então, e irremediavelmente, um caráter de exaltação mesmo. Lennon foi definitivamente beatificado e aí de quem dissesse o contrário.

O tempo hoje é outro. Cansar das pregações de John Lennon entre outros do mesmo naipe foi um luxo possível há 40 anos ou mais. Nossos ídolos (por mais que deteste idolatrar seja lá quem for) definitivamente não são mais os mesmos.

E cada vez menos se decide a própria vida.