Há exatos 75 anos, nascia na cidade de Sobral Antônio Carlos Belchior. Antes de cair “no Sul, grande cidade”, ele percorreu muitos caminhos pelo seu Ceará. Estudou por três anos num mosteiro de frades capuchinhos, em Guaramiranga. Cursou medicina em Fortaleza, onde descobriu que a música seria a melhor forma de divulgar suas poesias. Juntou-se com a geração que ficou conhecida como “Pessoal do Ceará” para cantar suas canções nas praias de Mucuripe.
Como todo “jovem que desce do Norte pra cidade grande, com os pés cansados e feridos de andar légua tirana”, Belchior comeu o pão que o diabo amassou nas megalópoles que obrigam todos os artistas a procurar trabalho em um país dominado pelo eixo Rio-São Paulo. Nas duas cidades, “viveu na rua e ficou desnorteado”, como era “comum no seu tempo” de ditadura militar.
Viveu no anonimato até vencer, com a música “Na hora do almoço”, o IV Festival Universitário de Música Brasileira, promovido pela TV Tupi, em 1971. Foi quando a maré começou a virar e sua carreira de músico e compositor tomou rumo. O prêmio serviu para chamar a atenção para aquele jovem rebelde, mas o sucesso se consolidou quando Elis Regina gravou as letras de “Como nossos pais” e "Velha Roupa Colorida" no clássico "Falso Brilhante" (1976). Foi também naquele ano que o compositor emplacou seu disco Alucinação, um dos mais importantes da Música Popular Brasileira.
Dali para frente, foram dezenas de discos e milhares de apresentações em todos os cantos do mundo. Até sua última aparição pública em 2009, quando participou do show do tropicalista Tom Zé, em Brasília. Depois, voltou para o anonimato, ou para a clandestinidade de alguém que queria exercer o sagrado direito de desaparecer.
Foi quase uma década nos descaminhos de América do Sul. Primeiro em cidades do Uruguai, depois do Rio Grande do Sul. Após uma longa carreira de sucesso, voltou a morar na rua, passar fome, viver como indigente, junto com sua companheira Edna Prometeu. Vivia fugindo, se escondendo, dependendo da ajuda de amigos e fãs que o acolhiam sob a condição de não revelar seu paradeiro.
Até que “a morte o carregou, feito um pacote, no seu manto”. No dia 30 de abril de 2017, um avião enviado pelo governo do Ceará levava seu corpo para ser recebido por uma multidão em prantos na capital cearense e depois na sua Sobral.
Ao mesmo tempo em que se escondia no Sul, as novas gerações descobriam suas músicas, se reconheciam em seus versos. Como se concretizasse como profecia o que havia cantado anos antes: “Eu sou como você que me ouve agora”.
Belchior virou um mito. São incontáveis os artistas que regravam suas canções. Já passa de uma dezena o número de livros lançados sobre o poeta somente neste ano. Em breve serão lançadas quatro obras audiovisuais sobre sua história, inclusive uma série televisiva.
No último Carnaval, em 2020, mais de 100 mil pessoas seguiram o Bloco Volta Belchior, que nasceu em Belo Horizontes em sua homenagem. Mais gente do que qualquer show que ele fez ao longo de sua carreira.
Inacreditável, mas quanto mais Belchior fugiu, mais foi encontrado.
*Kerison Lopes é presidente da Casa do Jornalista de Minas Gerais, ex-presidente da UBES e do Sindicato dos Jornalistas e fundador do Bloco Volta Belchior.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.