“Perdoai, eles não sabem o que fazem” – Postei essa frase de Cristo (livro de Lucas, capítulo 23, versículo 34) em 3 de fevereiro de 2017. Naquele dia assistia nas redes sociais pessoas comemorando o falecimento de Marisa Leticia, mulher de Lula. A frase de Cristo batia fundo no meu coração.
“Quando você comemora a morte o primeiro a morrer foi você” foi a frase atribuída ao Papa Francisco naquela oportunidade. A compaixão é algo essencial ao cristianismo. A dor pela dor do outro. A mesma forma de comemoração se repetiu quando Lula perdeu o neto. Tempos depois na Vaza Jato veio à tona que os procuradores ironizavam a morte de Marisa[1].
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No último 2 de outubro Lula obteve 57 milhões de votos enquanto Bolsonaro teve 51 milhões[2]. Nos sentimentos qual a chave de cada lado? Por que o segundo lugar na eleição saiu tão animado apesar de não estar liderando e por que parte do eleitorado de Lula sentiu-se inicialmente deprimido?
O mapa de um país dividido em vermelho e azul onde o vermelho significou as regiões onde Lula tem a maioria dos votos do nordeste até o meio do Brasil se contrastava com os locais onde Bolsonaro teve a maioria, do centro oeste ao sul. O mapa coincide com o mapa da fome[3]. E logo surgiram mapas indicando um nordeste comunista que deveria ser apartado no território nacional. Isso se soma as mensagens constantes de que se você apoia Lula deveria ir para a Venezuela. Uma recordação do lema do Regime Militar de 64: “Brasil ame-o ou deixe-o”.
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O Bolsonarismo para legitimar a sua existência reavivou esses conceitos de guerra advindos da Doutrina da segurança nacional e do pan-germanismo. Para isso se apropriou do nacionalismo, da bandeira e dos símbolos nacionais. De frases que “definem” o Brasil como pensam: “Nossa bandeira nunca será vermelha”. Em torno disso toda a ideia de eliminação da diferença. “Vamos fuzilar a petralhada”, disse Bolsonaro[4].
“As minorias têm que se adequar” disparou Bolsonaro em uma frase simples: “Outro dia eu falei... A mãe quer que o Joãozinho continue sendo Joãozinho. Ah, declaração homofóbica... Meu Deus do céu. Porra... Onde nós iremos? Cedendo para as minorias... As leis existem, no meu entender, para proteger as maiorias. As minorias têm que se adequar.”[5]
Enquanto para os Bolsonaristas a frase foi tomada como proteção a família e contra uma ilusória possibilidade de que o filho joãozinho se torne homossexual, para os demais a frase tomou viés muito maior, de que a maioria pretende submeter eventuais minorias na sua visão de mundo sem aceitar a diversidade.
A declaração de Bolsonaro ocorreu em um culto evangélico em Juiz de Fora. Os elementos religiosos em torno do bolsonarismo é o que mais assusta. Porque ao mesmo tempo que reúne pessoas que comemoraram a dor de Lula e a morte de sua mulher e seu neto, ao mesmo tempo que seu líder homenageou o torturador Ustra no impeachment de Dilma, usa a “palavra de Deus” ao seu lado. A insensibilidade de Bolsonaro com a morte é conhecida e se agravou na pandemia que matou quase 700 mil brasileiros[6] enquanto fazia propaganda contra a vacina, imitava pessoas morrendo sufocadas.[7]
Apesar do rastro de sangue, o qual não se coaduna com o slogan de proteção à vida do atual governo, existem religiosos evangélicos que continuam a apoiar o projeto de Bolsonaro, sua liberação de armas, e elegeram seus principais ministros Pazuelo, Damares, Salles em estados como RJ, SP e Distrito Federal.
A esquerda teve incríveis vitórias. Lula foi o mais votado, a bancada do PT aumentou, figuras como Boulos teve recorde de votos. Mas, mesmo assim, o sentimento de frustração foi forte. As pessoas, os 57 milhões, se perguntam, onde erram que não conseguem se comunicar com os outros 51 milhões de pessoas e mostrar a aos outros que o mundo pode ser mais eclético. Isso enquanto os 51 milhões se animam em impor uma vitória que elimine a forma de pensamento e ganhem a guerra definitivamente.
Enquanto o lado dos 57 milhões querem se comunicar os outros 51 milhões recebem vídeos fraudados na internet vinculando a esquerda a satanismo, a grupos de presidiários comemorando, a fraude nas urnas. A forma de condução da comunicação torna cada vez mais inacessível o outro grupo manipulado pelo medo de risco aos seus valores de vida.
Se contemporiza, normatiza, se vulgariza todas as formas de agressão. As mortes de Covid e as frases “não sou coveiro”, teriam ocorrido porque não havia ainda autorização da Anvisa. Os sentimentos são manipulados e invertidos e minimizados como “mi-mi-mís”.
No Capítulo “O Dogmatismo Individualista” no livro Poder e Saber[8] cito o complexo projeto bíblico enciclopédico desvendado por Gisálio Cerqueira Filho que através do pietismo que dá religião ultrapassa a estética através da música de Bach, Schreber e as suas relações emocionais e a citação de Slavoj Zizek sobre Schubert, Winterreise (viagem no inverno) escutada por soldados alemães no inverno Russo criando o sentimento de “se entregar a um lamento romântico de um destino miserável, como se a catástrofe histórica mais ampla simplesmente se materializasse no trauma de um amante rejeitado”.
As manipulações de sentimentos seguem o que a doutrina de segurança nacional chamava de guerra psicológica. Ao mesmo tempo que usa o sentimento de guerra religiosa, nacionalismo, e no projeto cultural questões simples como de que menina veste rosa e menino azul, gerando a eleição de Damares, verba pública de cultura para filmes sobre armas, cria a clara sensação na esquerda do “shock na awe” (choque e pavor) doutrina usada pelos americanos na guerra do Iraque, na submissão que Gislene Neder intitula perinde ac cadáver, submissão como um cadáver.
A guerra Bolsonarista anima seu lado e cria no lado da esquerda a sensação de que não consegue ser escutada nas suas preocupações com a humanidade, de que após se apropriarem da bandeira e dos símbolos nacionais do país que nos pertencem querem nos exilar. A sensação de que de alguma maneira estão invadindo e nos tirando nosso lar, nossa casa, Brasil.
Certamente é necessário compreender que a falta de profundidade nos temas históricos e o empobrecimento da leitura fazem com que se torne possível a existência da manipulação de informações, sentimentos, religiões que fizeram o Bolsonarismo chegar a esse ponto. Que será necessário repensar como irá se desatar esses dois Brasis. Nessas meditações inclusive como irá se permitir e incentivar o surgimento de uma nova oposição de direita, de centro, que divida forças com a extrema direita. O momento exige profunda reflexão sobre quais batalhas iremos travar dentro do período histórico vivenciado.
O momento exige que para a sobrevivência da forma de pensar, para que seja possível a diversidade, Lula seja eleito presidente da República. Essa é a batalha fundamental diante de um congresso majoritariamente de direita, do senado à câmara. As energias, o amor, a emoção, a esperança tornam imprescindível para a balança do poder a eleição de Lula.
Não há tempo a perder. “É preciso estar atento e forte, não temos tempo de temer a morte”. E lembrar que o momento não é o de convencer os 51 milhões de leitores de Bolsonaro, mas nos dirigirmos aos 57 milhões que votaram em Lula a falarem com os que votaram em Tebet, em Ciro, em branco ou nulo, que o que queremos é a diversidade, a coexistência, o combate a fome. Os famintos precisam de nós. Já tivemos momentos piores no Brasil, de ditadura, de tortura, de desaparecidos. Esses momentos devem pesar no tamanho da responsabilidade que repousa sobre nós.
No momento em que na Itália retorna ao partido de Benito Mussolini com uma mulher de extrema direita como primeira ministra, escutemos Bella Ciao (convido o leitor a nesse momento do texto[9]) e sejamos partigianos na luta pela liberdade. Escutemos Chico Buarque (novamente convido o leitor a escutar nesse momento[10]) sabendo que “hoje você é quem manda, falou tá falado não tem discussão” ... “você vai ter que ver a manhã renascer e esbanjar poesia como vai se explicar vendo o céu clarear de repente, impunemente, como vai abafar, nosso coro cantar a sua frente”.
[1]https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2019/08/27/lava-jato-morte-marisa-leticia-lula.htm
[2]https://valorinveste.globo.com/mercados/brasil-e-politica/noticia/2022/10/03/quantos-votos-faltaram-pra-lula-ganhar-no-primeiro-turno.ghtml
[3]https://g1.globo.com/economia/noticia/2022/09/14/tres-em-cada-dez-familias-brasileiras-nao-tem-acesso-suficiente-a-alimentos-e-passam-fome.ghtml
[4]https://noticias.uol.com.br/colunas/leonardo-sakamoto/2022/07/10/vamos-fuzilar-a-petralhada-disse-bolsonaro-em-2018-no-pr-obedeceram.htm
[5]https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2022/07/15/bolsonaro-defende-falas-transfobicas-minorias-tem-que-se-adequar.htm
[6] https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2022/09/brasil-chega-a-686-mil-mortes-por-covid.shtml
[7] https://g1.globo.com/politica/eleicoes/2022/noticia/2022/08/22/bolsonaro-imitou-paciente-com-falta-de-ar-durante-transmissoes-ao-vivo-na-internet-em-2021.ghtml
[8] Capítulo 8 do livro “Poder e Saber: Campo jurídico e ideologia” (2012). Disponível gratuitamente em: https://ffernandes.adv.br/livros/
[9] https://www.youtube.com/watch?v=s4rl4cnUnpw
[10] https://www.youtube.com/watch?v=33-bMTOlvx0