história

A cidade abandonada no coração da Amazônia que revela uma história de utopias e revoltas

Era uma porção de América do Norte no norte da América do Sul: como era o empreendimento fracassado da Ford às margens do rio Tapajós

Escrito em História el
Mestranda em Ciência Política e bacharel em Relações Econômicas Internacionais pela UFMG, já foi treinee de Ciência e Saúde da Folha de S. Paulo e escreve sobre Ciência e Tecnologia para a Revista Fórum. Tem interesse por temas de geopolítica e economia internacional.
A cidade abandonada no coração da Amazônia que revela uma história de utopias e revoltas
Trabalhadores de Fordlândia limpando os seringais na Amazônia.. Flickr

Em 1927, o industrial americano do setor automobilístico Henry Ford, fundador do sistema de produção fordista (marcado pela padronização de suas linhas de montagem, que eram separadas por funções específicas, e determinavam uma produção em larga escala), adquiriu cerca de um milhão de hectares de terras às margens do rio Tapajós, no estado do Pará.

As terras foram vendidas a Ford com uma concessão do governo estadual, e estavam destinadas a um plano ousado: criar um megaempreendimento agroindustrial em forma de cidade para garantir o suprimento do látex utilizado na produção dos pneus de sua montadora. Na época, a borracha era um insumo estratégico, e o mercado asiático, que dominava a produção, passava por tensões políticas e comerciais que preocupavam os Estados Unidos.

O projeto, no entanto, ia muito além da produção de matéria-prima: Ford pretendia criar, no coração da Amazônia, uma cidade-modelo que reproduzisse, também, os valores amplamente difundidos da cultura capitalista norte-americana, sobretudo entre as classes médias. Esses valores incluíam um regime de disciplina produtiva baseado em regras bem determinadas de higiene pessoal, abstinência sexual, alta eficiência e uma moralidade religiosa tipicamente cristã.

Nascia, assim, a Fordlândia, uma espécie de utopia industrial dos trópicos, na visão de Ford.

Torre de água e construção em Fordlândia.
Créditos: Wikipedia

Os planos urbanísticos da cidade previam a criação de um hospital bem desenvolvido, escolas e cinemas para a educação popular, igrejas, uma piscina pública (bem ao modo dos Estados Unidos), quadras desportivas e até um campo de golfe, esporte que era incentivado na cidade. Além disso, as ruas tinham uma infraestrutura que mimetizava os desenvolvimentos americanos, asfaltadas e com hidrantes de calçada. A mesma lógica se aplicava à arquitetura das casas, que imitava o estilo dos subúrbios americanos, e o ritmo de vida era ditado pelo relógio de ponto, pelas sirenes e por uma hierarquia rígida entre as funções sociais.

Montagem de fotos de Fordlândia: casas ao modelo americano, salão de festas, hospital público e hidrante.
Créditos: arquivo histórico Ford Company / divulgação

Era uma porção de América do Norte no norte da América do Sul: a rotina dos brasileiros da Amazônia — uma região com características peculiares de clima e vegetação, hábitos alimentares e influências da cultura indígena nativa — foi profundamente alterada com a imposição de hábitos alimentares típicos dos EUA, um horário fixo para todas as refeições, a proibição do consumo de álcool, o controle sobre as vestimentas da população e a obrigatoriedade da realização periódica de cultos protestantes.

Com o tempo, todas as exigências e proibições criaram um ambiente inóspito e de difícil convivência entre os trabalhadores e as lideranças empregadas pela Ford para controlar a região. O calor amazônico castigava as roupas dos seringueiros, adaptadas a uma região mais ao norte do mundo, e a instabilidade dos seringais e do clima regional, com chuvas periódicas que impediam o trabalho nos campos, em meio à necessidade de manter um regime de horas rígido e pré-determinado para sustentar a disciplina (muitas vezes improdutivo), foram tornando a experiência uma verdadeira tortura para os habitantes da Fordlândia, e geravam crescente insatisfação.

Trabalhadores de Fordlândia limpando os seringais na Amazônia.
Créditos: The Henry Ford via Flickr.

A tensão entre os trabalhadores amazônicos e os administradores norte-americanos enviados para supervisionar a produção industrial em Fordlândia finalmente atingiu seu ápice em dezembro de 1930, quando eclodiu a chamada “Revolta dos Caboclos”.

O estopim da revolta foi um acontecimento ocorrido no refeitório de uma usina: os trabalhadores exigiam a volta da comida regional, como peixe frito, farinha e açaí, e rejeitavam o cardápio importado que lhes era imposto. A proibição do consumo de álcool e a rigidez dos horários também se somavam às reclamações gerais. Quando, certo dia, um grupo de trabalhadores foi repreendido pela gerência por desobedecer às normas do refeitório, o clima revoltoso se espalhou rapidamente e terminou em violência generalizada.

Armados com facões, machados e paus, centenas de operários ocuparam prédios administrativos, destruíram instalações, quebraram janelas e queimaram móveis. Os geradores da usina de energia de Fordlândia foram danificados, e o controle da cidade passou às mãos dos revoltosos.

Os administradores americanos se refugiaram na selva ou se esconderam em casas de aliados locais, enquanto outros fugiram de barco pelo rio Tapajós. Para conter a rebelião, a Ford chegou a solicitar ajuda ao governo brasileiro, que enviou militares transportados por aviões da PanAm, empresa americana de aviação.

Do ponto de vista produtivo, o empreendimento também não havia sido bem sucedido. A falta de conhecimento sobre a agricultura tropical levou, por exemplo, ao plantio de seringueiras em sistema de monocultura, com árvores muito próximas entre si, o que facilitou a proliferação de pragas da plantação, como o fungo Microcyclus ulei, o causador da doença conhecida como “mal-das-folhas”. A produção de látex jamais atingiria o volume necessário para justificar os investimentos de Ford no seu projeto utópico, que ficou em torno de US$ 20 milhões.

Em 1932, diante dos prejuízos sofridos pelo projeto, e sob orientação do botânico James R. Weir, a Ford decidiu “transferir a Fordlândia” para uma nova área, cerca de 100 quilômetros ao sul da cidade inicial. Lá, a companhia fundou Belterra, a nova cidade da sua “distopia”. 

Vista aérea da Fordlândia em sua localidade inicial, no estado do Pará, às margens do Rio Tapajós.
Créditos: public domain

Mesmo com a nova tentativa, os resultados da produção de borracha continuariam bem abaixo do esperado. A popularização da borracha sintética, ocorrida durante a Segunda Guerra Mundial, reduziu ainda mais o interesse pelo cultivo amazônico da seringueira, e aos poucos relegou o projeto fordista ao fracasso iminente.

Finalmente, no ano de 1945, a Ford encerrou oficialmente suas atividades no Brasil e vendeu todo o conjunto da cidade — sua usina, as casas e escolas, e toda a infraestrutura remanescente — ao governo brasileiro, que “barganhou” a iniciativa (com duração de quase duas décadas e um investimento cerca de 80 vezes maior do que o valor de sua venda) por cerca de 250 mil dólares. 

Galpão de fábrica abandonado em Fordlândia.
Créditos: Guido d'Elia via Flickr.

Apesar disso, a Fordlândia não desapareceu: muitos dos trabalhadores decidiram permanecer na região, e formaram uma comunidade que resiste até hoje. Em 2017, a localidade foi oficialmente elevada à condição de distrito do município de Aveiro. Seus antigos antigos galpões, casas, o hospital e os reservatórios de água ainda estão de pé, parte em ruínas, parte reutilizada por moradores. Há, inclusive, iniciativas em curso que querem transformar o local da experiência industrial falha de Henry Ford em patrimônio histórico.

 

Logo Forum