Sábado é meu dia de folga e, assim que acordei, fui navegar pelas redes sociais e me deparei com o nome do presidente chinês, Xi Jinping, no topo dos assuntos mais comentados no Twitter no Brasil.
O rumor de que o líder chinês estava preso e que estaria em curso um golpe de estado na China me arrancou gargalhadas. Segui o fio de onde havia saído essa informação estapafúrdia e cheguei ao ponto zero do delírio: uma jornalista chinesa radicada nos Estados Unidos e ligada a Falun Gong, Jennifer Zeng.
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A jornalista gravou um vídeo no qual fala que fontes dela no Partido Comunista da China (PCCh) em Beijing a relataram o ocorrido. Em seguida ela mesma desmentiu o que havia noticiado. Mas o estrago já estava feito.
Jennifer atua como freelancer para The Epoch Times, um jornal multilíngue internacional de extrema direita e uma empresa de mídia afiliada ao movimento religioso Falun Gong. O jornal, com sede em Nova York, faz parte do Epoch Media Group, que também opera a New Tang Dynasty Television.
Falun Gong é um movimento religioso e político que se opõe ao PCCh. Eles são uma espécie de seita digna de Olavo de Carvalho, que prega o idealismo, o teísmo e a superstição feudal e foram banidos da China.
Por via das dúvidas, monitorei o assunto nas redes sociais brasileiras ao longo do dia e conversei com fontes. Principalmente o meu professor e camarada Elias Jabbour, que me mandou por áudio uma declaração sobre o ocorrido.
"Todo Congresso do Partido Comunista é antecedido por uma série de boatos. Por exemplo, era muito comum até o último congresso do PCCh nomear o próximo presidente da China como o 'novo Gorbachev', o 'Gorbachev chinês'. Ou seja, há um desejo dos americanos em instalar um Gorbachev na China, e nunca deu certo. Essa questão do golpe é a mesma coisa. Toda época antes do congresso surge esse tipo de boato, coisa que já está muito batida."
Elias Jabbour
O russo Mikhail Gorbachev, falecido no dia 30 de agosto deste ano, aos 91 anos, foi o último líder da União Soviética, entre 1985 até a dissolução do país, em 1991. Ele era um marxista-leninista que mudou para a social-democracia no início dos anos 1990 e foi um dos artífices do fim da experiência socialista da URSS.
O 20o Congresso Nacional do PCCh será realizado no próximo dia 16 de outubro. Neste domingo (25) foi anunciado que já foram escolhidos os 2.296 delegados que vão participar do evento, que é o mais importante da China e desperta interesse do mundo todo. Entre os delegados está Xi Jinping.
Durante o encontro será feito o balanço do trabalho do PCCh nos últimos cinco anos e das conquistas e a experiência do Comitê Central sob a liderança de Xi Jinping. Também serão formulados planos de ação e políticas importantes e eleitas novas lideranças centrais.
Eu sigo nas redes muita gente que se dedica a estudar a China no Brasil. Entre elas, Hugo Albuquerque, jovem e brilhante advogado que é um dos editores da ótima Autonomia Literária, que se dedica à publicação de títulos marxistas.
Ele fez um fio excelente sobre como avalia o boato da prisão de Xi Jinping. "É um grande caça cliques, mas também um balão de ensaio vindo de meios marginais da própria China, embora amplificado pela mídia ocidental antichinesa", escreveu.
Hugo falou ainda sobre a popularidade e a força do líder chinês, que são contrastadas por inimigos poderosos. "A campanha anticorrupção na China é imensa e resultou em sanções e expulsões de um número incalculável de pequenos e médios membros do Partido. Mas também chegou às alturas".
O advogado comentou que a recente condenação de um antigo ministro da Justiça, Fu Zhenghua, à prisão perpétua por corrupção é um exemplo disso. Por outro lado, pontua, marca o desmonte de uma camarilha ligada ao 'partido de Xangai' - a turma que hegemonizou o partido desde os anos 1990 até Xi, explicou.
"Xi, como dizemos no futebol, mostrou as travas da chuteira para quem quiser lhe desafiar. Inclusive porque seus adversários têm telhado de vidro. Mas é evidente que há tensões: o presidente chinês promove um grande freio de arrumação na direção do socialismo."
Hugo Albuquerque
A China, prosseguiu Hugo, assumiu uma linha de crescer mais sustentável e melhor. Isso explica avanços mais rápidos no IDH do que no PIB, em comparação com os governos de Jiang Zemin (1989-2002) e Hu Jintao (2002-2012). "Isso aumenta a popularidade do presidente, mas também a raiva dos seus adversários", finalizou.
Outra pessoa que consultei foi o colega brasileiro Renato Peneluppi, ele é advogado e mora há 12 anos em Wuhan, província de Hubei, no centro do país. A cidade é conhecida como ponto zero da pandemia da Covid-19, mas é um lugar de conhecimento e tem universidades importantes.
Renato tem sido o meu principal elo com a comunidade brasileira na China, um parceiro de debates políticos sobre o sistema chinês e um mobilizador-chave dos apoiadores da eleição de Luiz Inácio Lula da Silva para a Presidência do Brasil. Com ele eu aprendo todos os dias sobre essa civilização multimilenar e foi natural que procurasse a opinião dele sobre essa 'mamadeira de piroca' chinesa.
Para ele, o fato de a jornalista que disseminou a mentira escrever para The Epoch Times, um veículo de extrema direita; ser da Falun Gong, um movimento religioso anti PCCh; usar plataformas como Twitter e YouTube, que podem ser consideradas instrumentos de uma guerra híbrida; mais a versão de fatos que circula nas mídias sociais que acaba se sobrepondo à realidade são uma combinação bombástica.
Renato observa que o momento de transição de poder em qualquer país no mundo é de muita vulnerabilidade. Mas na China, esse processo ganha características específicas, pois é construído em longo prazo a partir da base social e entre os pares, com um centralismo democrático forte.
O centralismo democrático é um princípio de organização comunista que combina a democracia eleitoral e a discussão livre, com a disciplina política e uma direção executiva centralizada. O conceito tem origem sobretudo no livro 'Que Fazer?' (1902) de Vladimir Lenin, e é frequentemente sintetizado na sua frase: "unidade na ação, liberdade de discussão e de crítica". Quando aplicado a um partido comunista, significa que todos os militantes têm liberdade de debater e discutir todas as políticas, mas, após um consenso estabelecido através de uma votação, é esperado que todos sigam as políticas concordadas.
Ele ressaltou que essa notícia mirabolante não circulou na China, exceto em locais onde são acessadas mídias ocidentais, o que não é usual aqui. Por outro lado, observou, a fake news teve grande impacto entre os usuários brasileiros. Para ele, é sinal de que o nosso sistema está cooptado.
Mesmo entre centros de pesquisa sérios, em países de forte tradição de sinologia, ou locais de grande concentração da forte oposição ao PCCh, como em Taiwan e Hong Kong, essa notícia não mereceu atenção e muitos menos foi comentada, ressaltou Renato.
"Somos muito vulneráveis a fake news, boatos, porque não baseamos nossa opinião, ou construímos a opinião pública, com base em especialistas, mas sim em informação on-line, boatos, fofocas e números de likes a quem nos agrada…"
Renato Peneluppi
Eu perco amizades, mas não deixo passar a piada. E a história do golpe se soma a outras campanhas de desinformação que têm a China como alvo. Durante a crise de Taiwan, os 'especialistas' de Twitter decretaram que seria a Terceira Guerra Mundial. Toda semana essa mesma gente crava que a economia chinesa vai quebrar. Agora, resolveram prender Xi e deflagrar um golpe militar em Beijing. Seria cômico se não fosse trágico e parte de uma ofensiva anti-China liderada pelos interesses estadunidenses.
A lição que fica de mais esse episódio da guerra semiótica ocidental contra a China é de que vale a máxima de duvidar sempre, de tudo. Cheque antes de disseminar essas notícias mirabolantes, em especial quem as lança nas redes.
Até amanhã!