OPINIÃO

As mudanças das tarifas comerciais dos EUA reacendem o papel da África na economia global

Esse novo cenário, marcado por reações coordenadas de países africanos a medidas protecionistas dos EUA, não é apenas econômico: é também cultural, simbólico e geopolítico.

Wamkele Keabetswe Mene, secretário-geral da Zona de Comércio Livre Continental Africana.Créditos: Divulgação
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Por séculos, o continente africano foi mantido à margem das grandes decisões econômicas globais, visto ora como reserva de recursos naturais, ora como espaço de intervenções externas. A herança colonial, somada às dinâmicas atuais do comércio internacional, contribuiu para consolidar uma posição periférica e dependente. Mas esse lugar está em disputa. As recentes declarações de Donald Trump sobre possíveis tarifas contra exportações africanas — como a revisão do AGOA — reacendem não apenas tensões diplomáticas, mas uma pergunta central: qual é o papel estratégico da África na economia mundial do século XXI?

Embora pouco noticiado, o impacto potencial dessas medidas sobre as economias africanas é profundo. O Quênia, por exemplo, exporta mais de US$ 540 milhões anuais em produtos têxteis para os EUA, sustentando mais de 60 mil empregos diretos em zonas econômicas especiais. A Nigéria exporta aproximadamente US$ 4,5 bilhões em petróleo bruto para o mercado americano — uma fatia significativa de sua receita externa. Gana, por sua vez, teme um colapso competitivo caso os EUA imponham sobretaxas de até 12% sobre derivados de cacau, seu principal produto de exportação industrializada.

Esses dados foram publicados recentemente por jornais regionais como The East African e Vanguard Nigeria, e reiteram um cenário de instabilidade econômica iminente, caso os EUA adotem novas tarifas punitivas. A reação de diplomatas africanos tem sido silenciosa, mas estratégica. Em Addis Ababa na Etiópia, representantes de pelo menos doze países se reuniram para debater possíveis retaliações simbólicas, inclusive limitando o acesso de empresas americanas a setores estratégicos como mineração e telecomunicações.

No entanto, há quem veja na crise uma oportunidade. Pesquisadores da Brookings Institution e do Banco Africano de Desenvolvimento sugerem que esse momento pode acelerar processos já em curso, como a implementação plena da Zona de Livre Comércio Continental Africana (AFCFTA). Essa reconfiguração pode promover uma transição de uma África exportadora de matéria-prima para um continente com cadeias de valor mais integradas e industrializadas. A crise, nesse sentido, pode ser um catalisador de autonomia.

“Trump’s protectionism might, unintentionally, fuel Africa’s economic independence.” — AfDB Policy Brief, 2025.

A invisibilidade da África nas pautas comerciais internacionais não é fruto do acaso. Como aponta o filósofo Achille Mbembe, o continente é frequentemente tratado pelas potências globais como um “exterior absoluto” — um espaço deslocado da centralidade histórica, onde o tempo e o desenvolvimento seriam suspensos. Essa marginalização simbólica reverbera também na economia: o continente raramente é reconhecido como agente estratégico, mesmo em contextos nos quais exerce papel central, como na exportação de minérios críticos, petróleo ou têxteis. Trata-se menos de uma invisibilidade estratégica — e mais de um apagamento estrutural com raízes coloniais.

Além disso, como destaca a antropóloga Rita Abrahamsen, o discurso hegemônico sobre África tende a ser marcado por duas imagens contraditórias e complementares: a da vítima eterna e a do mercado emergente a ser conquistado. Em ambas, o continente é objeto, nunca sujeito. Isso explica por que os impactos de uma mudança drástica na política comercial dos EUA sobre 35 países africanos ainda são tratados como nota de rodapé nos grandes jornais internacionais.

Esse novo cenário, marcado por reações coordenadas de países africanos a medidas protecionistas dos EUA, não é apenas econômico: é também cultural, simbólico e geopolítico. A África, que antes ocupava um lugar marginal nas cadeias globais, agora emerge como um polo de renegociação de sentidos, saberes e interesses. O que está em jogo não é apenas a balança comercial, mas a construção de um novo lugar de fala — e de ação — do continente no sistema-mundo.

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