OPINIÃO

Violência financeira sofrida por pessoas 60+ - por Célio Turino

Crônica inspirada na vida real

Imagem da Vila Brasilândia Créditos: YS/Picasa
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Sopé da Serra da Cantareira, entre ladeiras, escadarias e vielas: Vila Brasilândia, zona norte de São Paulo. Naquele sopé vive dona Esperança com seus 76 anos bem vividos. Figura conhecida, desde há muito participando de todas as lutas e movimentos comunitários da região, acompanhou mutirões de moradia, a chegada do primeiro posto de saúde, as escolas melhorando, a primeira creche da prefeitura, a água, o esgoto, a horta comunitária... Sob a pandemia da Covid juntou a sua gente em rede para que pudessem se proteger contra o vírus que ceifou tantas vidas. Sempre de vestido florido, chapéu de palha com laço vermelho, e um sorriso a iluminar as ladeiras. Esperança é dessas mulheres valentes, sofridas e alegres, como tantas que se vê pelas periferias do Brasil. Transforma cada caminhada em um evento social, conversa com todos, distribui força e alegria.

Anos passados naquela Vila cujo nome é homenagem ao Brasil, distrito da periferia de São Paulo com população de cidade grande: quase 250.000 habitantes. O tempo trouxe a idade, que trouxe sabedoria e também suas tantas vulnerabilidades. Foi assim que a violência, insidiosa e silenciosa, encontrou morada na vida de dona Esperança. Não a violência que estampa nas manchetes de jornais, em que idosos são assaltados à luz do dia ou crianças são atingidas por balas perdidas, mesmo sabendo-se que não existe bala perdida. Ela foi vítima da violência que se esconde nas entrelinhas de contratos e extratos: a violência financeira.

Tudo começou com um telefonema, aquele telefonema. A voz do outro lado do celular soava tão prestativa, familiar e confiável. Havia um crédito à disposição dela, uma soma que nunca fora capaz de juntar em vida. Era só fechar o contrato e o dinheiro estaria na conta. 

A despeito de uma vida de privações, dona Esperança não necessitava do dinheiro para si; ela consegue viver bem com a pensão do falecido marido que, somada à própria aposentadoria, resulta em dois salários mínimos. Tem casa própria, humilde, mas dela, construída em mutirão com apoio da prefeitura no período em que Luíza Erundina fora prefeita da cidade. Pelas mãos dela, do esposo, da filha e do filho, ainda crianças quando ajudaram na construção, ergueram a casa, carregando argamassa, pedra, tijolo e areia. 

Quando recebeu a oferta do dinheiro rápido em sua conta, Dona Esperança pensou em resolver problemas urgentes do filho, desempregado, e da filha que cria a filha, sua neta, sem ajuda do pai. Com coração de mãe generosa assinou o empréstimo e autorizou o desconto diretamente de sua aposentadoria. 

O filho e a filha, envolvidos em rotinas frenéticas em meio a tantas dificuldades aceitaram de bom grado aquele dinheiro chegado em tão boa hora. Mal perceberam as condições para o pagamento futuro. Difícil imaginar que aquela mulher tão forte, mãe da família e da comunidade, que a cada caminhada irradia esperança, iria entrar numa enrascada.

Santo Agostinho escreveu que a Esperança tem duas filhas lindas: a Indignação e a Coragem. Indignação para não aceitar as injustiças e a Coragem para enfrentá-las. Assim se fez Esperança pelas ladeiras da Vila. Todos sentiam sua força. Mas não perceberam o que estava a acontecer. E as contas, antes pagas tão certinhas, cabendo no orçamento da aposentadoria e pensão recebidas, agora não mais podiam ser quitadas, acumulando-se a cada mês. Contas sendo acumuladas sob juros e mais juros. Subindo e descendo como as ladeiras da Vila até virarem uma enxurrada a arrebentar ladeiras e arrastar tudo à frente. Mãe do amparo, que não compartilhou suas agruras com ninguém, por esteio durante toda uma vida. Esperança encontrara-se só.

Felizmente a história de dona Esperança não termina em desespero. Em momento de vulnerabilidade ela encontrou força e aprendizado matriculando-se em um curso de educação financeira para idosos. Curso ministrado não em uma escola ou universidade, mas na Associação do Bairro, lugar que ela e o marido haviam fundado há muito tempo atrás, quando nem luz elétrica havia chegado ao sopé da serra da Cantareira. 

Com amigas e amigos, todos com mais de sessenta anos, alguns com mais de oitenta, se dispôs a aprender sobre juros, juros compostos, fraudes e golpes, planejamento financeiro e sustentabilidade, incluindo ambiental. Aprendeu a usar o aplicativo do banco, a conferir extratos e a não confiar cegamente em telefonemas prometendo mundos e fundos, nem em mensagens de “zap”. Com o aprendizado adquirido com o curso, e o tempo, conseguiu reorganizar as finanças pessoais.

Entre uma aula e outra alçou asas com a educação financeira. Descobriu que educação financeira não se refere apenas a números e contas, mas a autonomia e dignidade. Sentiu-se confiante, mais preparada para enfrentar as pequenas ciladas da vida. Naquele grupo reforçou amizades, compartilhando histórias e aprendizados. Agora iniciou um novo mutirão, não mais para construir casas, mas para auxiliar as pessoas a proteger em união, juntos contra a violência financeira contra idosos.

Dona Esperança, que antes via o dinheiro como algo distante, ainda mais nesses tempos em que tudo é virtual e nem papel existe para o manuseio das notas, passou a usar a educação financeira como uma ferramenta para viver melhor e mais segura. Mas antes disso foram meses de desespero e solidão. Imaginem essa condição para uma septuagenária lutadora do povo. Quantas e quantos como ela não estão sofrendo dessa violência? Agora, nesse exato momento.

Dona Esperança é nome fictício, tudo mais é verdadeiro. Apesar das violências de todo tipo que rondam a velhice no Brasil, a educação financeira pode dar Asas à Longevidade, transformando fragilidade em força, ingenuidade em sabedoria, solidão em solidariedade. No caso da história de Esperança, o sorriso voltou e o chapéu com fita vermelha ganhou uma flor.


(Crônica escrita a partir do acompanhamento de cursos de educação financeira para pessoas idosas, dentro do projeto Asas à Longevidade do Instituto Casa Comum, com apoio do FMID – Fundo Municipal do Idoso da Cidade de São Paulo- e da BBSeguros)

Por Célio Turino – Historiador, escritor, doutor em Humanidades pela Universidade de São Paulo. Caminha por aí, semeando as ideias da Cultura Viva e do Bem Viver. Integra o Instituto Casa Comum.

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