Regimes de exceção fazem surgir heróis involuntários. E dentre estes tantos, está a corajosa história de Eunice Paiva, mulher que foi levada a crescer para muito além do que o seu destino inicial prometia. Ela era esposa do desaparecido político Rubens Paiva, engenheiro e ex-deputado federal que foi, como vários outros, brutalmente torturado, assassinado e desaparecido pela ditadura militar brasileira nos anos 70.
Ela viu sua vida desabar quando se descobriu sozinha tendo que criar cinco filhos e, em paralelo a isto, lutar para descobrir o paradeiro do marido. Se formou em Direito aos 47 anos e virou ativista pelos direitos civis, sobretudo dos indígenas. Sua história acabou contada pelo filho Marcelo Rubens Paiva no comovente livro “Ainda estou aqui”, de 2015.
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O livro, por sua vez, acaba de chegar às telas no impactante filme homônimo de Walter Salles. Uma obra-prima irretocável que, entre tantas qualidades, se destaca a interpretação de Fernanda Torres no papel de Eunice. Uma grande personagem para uma excelente atriz.
A bem da verdade, um papel desses aparece uma vez na vida e outra na morte. E não é tão fácil quanto parece. Um erro aqui, uma escorregada ali e tudo desmorona. Qualquer exagero, deslize, arroubo ou pretensão de se colocar à frente da persona que se interpreta poderia colocar tudo a perder, inclusive o filme.
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Ao contrário disso, Fernanda Torres consegue inserir toda a dor, pavor e posterior coragem da saga de Eunice em pequenos olhares, gestos. Nada em sua atuação é anguloso, exagerado. Tudo nela neste filme é grandiosamente mínimo, sutil, delicado e pausado, a ponto de a colocar, desta vez e talvez daqui em diante, do tamanho da sua mãe, a atriz Fernanda Montenegro.
O Santos de Pelé
Walter Salles, por sua vez, percebeu isso com clareza e colocou elenco, cenografia, figurinos e tudo mais jogando em torno de Fernanda como o Santos de Pelé. Todos os atores, a começar por Selton Mello, são craques. As crianças, os coadjuvantes, todos funcionam perfeitamente ao redor de Eunice/Fernanda.
Marcelo Rubens Paiva chegou a declarar em entrevista ter se impressionado com a atuação do menino Guilherme Silveira, que fez seu papel quando criança. Segundo o escritor, ele se viu na interpretação do garoto.
O longa, por sua vez, traz sutilezas e belezas sem fim. Entre elas, a cena em que a família e amigos dançam juntos na sala de casa o irônico e curioso samba-rock de Juca Chaves “Take me Back to Piauí”. Tudo na sequência, luz, música, cortes rápidos, movimentos dos atores, transpira uma felicidade sem fim pronta para ser decepada.
A partir do horror da invasão dos agentes da ditadura dentro do mesmo ambiente, feliz e harmonioso, o filme escurece. Suas luzes mudam, as tomadas se tornam mais longas, o foco que era difuso se torna conciso, fechado.
Começa, enfim, a tortuosa história de Eunice e sua poderosa família. A sala abarrotada explode em aplausos e gritos, agradecida por tanta beleza e coragem.