Por Antonio Mello*
Muita gente tem uma rotina diária que cumpre à risca, além do trabalho. Uns se exercitam em casa, fazem esteira, ioga, meditação. Outros preferem as academias ou clubes. Fazem musculação, natação, corrida. Há os que andam de bicicleta, dão voltas completas pela Lagoa, fazem o circuito de ciclovia das praias do Rio. O peripatético "louco do supermercado" vai ao supermercado. Não falta um dia. A não ser que esteja doente. Ou viajando.
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Pode estar o maior toró, a cidade inundada. Numa hora a água desce e ele também. E lá vai ele em seu passeio circunspecto, que invariavelmente, como o rio dá no mar, para num supermercado.
Como o garoto "louco da aldeia" do filme Dodeskaden, do genial cineasta japonês Akira Kurosawa, que parte diariamente em seu trem imaginário (no onomatopaico "dodeskaden, dodeskaden" do trem em movimento), de sua casa até uma favela próxima e depois de volta ao ponto de partida, o peripatético "louco do supermercado" sai de casa diariamente, dá uma volta de uma hora, às vezes de várias, vai ao supermercado e volta para casa.
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Ele anda compenetrado, embora olhe à frente e para o chão, tantas as armadilhas nas calçadas da cidade, como se em transe, o pensamento navegando a quilômetros de distância, até que finalmente lança a âncora, desce do barco e entra no mundo real do pacote de arroz, uma verdura para a salada, o pensamento no dia a dia da casa. Para depois levantar âncora outra vez e voltar para casa com as sacolas de compra.
Em sua caminhada, o peripatético "louco do supermercado" tem seu pensamento interrompido várias vezes por pequenos flashes, quando seus olhos flagram a língua de uma menina lambendo o sorvete, o encontro de dois cachorros que embaralham as coleiras, uma amêndoa que quase cai na cabeça de um homem à sua frente, o porteiro de um prédio que acena, o jornaleiro que conhece há décadas arrumando a pilha de revistas.
Outras vezes é o som de alguém que passa falando ao telefone, as duas meninas que vão à praia, a buzina de um carro. Mais recentemente, o perigo das bicicletas que teimam em dividir a calçada com os pedestres. Um número incontável de entregadores e, o pior, as bicicletas elétricas, silenciosas e em velocidade, pilotadas geralmente por jovens impacientes.
Tudo isso importuna mas não impede o passeio diário do peripatético "louco do supermercado", que vai assim entre parênteses porque ninguém nunca o chamou diretamente assim, embora muitos pensem exatamente isso de sua excêntrica mania.
Quando encontra algum conhecido que o para na rua, é visível seu desconforto e a força que faz para retomar o caminho sem parecer ofensivo ou desagradável — o que certamente, ou provavelmente, não consegue.
Muitos lhes perguntam por que não faz compras semanais ou mesmo mensais. Ou ainda, por que não faz como muitos atualmente que pedem tudo pela internet. "É tão mais prático".
Não entendem que para o peripatético "louco do supermercado" esses passeios são seu contato mais próximo com os humanos reais, pessoas em seus movimentos diários, umas com pressa, outras vagarosas; pessoas em cadeiras de rodas; idosos com suas cuidadoras; a loura que passeia com seu novo galgo, porque o anterior morreu ou está muito velho para passear.
Na sua ida diária ao supermercado (às vezes mais de um, em busca de um produto específico), ele testemunha a passagem do tempo nas folhas que caem das amendoeiras, nas casas que se transformam em prédios, na criança que viu no carrinho, cresceu, virou adolescente, mulher, e que agora passeia com a filha no carrinho, como antes era ela no carrinho a passear, enquanto o peripatético "louco do supermercado" cumpre sua rotina, não imune à passagem do tempo ele também.
Saboreando cada passeio desses, pois não sabe até onde e quando o tempo vai lhe deixar navegar, ele volta mais uma vez de sua viagem com suas sacolas, cumprimenta o porteiro do prédio, pega o elevador, sobe até seu andar, entra em casa, deixa as sacolas no chão da cozinha e corre para escrever o que estava faltando no texto que havia pensado, a frase final, o fecho.
Então ele se senta e digita no computador:
— O peripatético "louco do supermercado" sou eu.
*Antonio Mello, escritor, blogueiro do Blog do Mello, autor do romance ELA (linktr.ee/blogdomello) publica uma crônica todo domingo aqui na Fórum.