Medicina moderna, agronomia e consulta com um farmacêutico – Por Mouzar Benedito
De vez em quando comparo a medicina e a agronomia, coisas que podem parecer não ter nada a ver
Tenho ido muito a médicos e hoje em dia, seja para que doença ou suspeita de doença for, pedem de cara exames de sangue e, conforme o caso, alguns outros. Não estou reclamando, só constatando, e acho até que isso ajuda no diagnóstico e no tratamento. Só que parece que hoje em dia se desaprendeu a diagnosticar sem exames. E reconheço: a medicina moderna está prolongando muito a vida da gente. Basta ver qual era a expectativa de vida há umas décadas e comparar com a de hoje.
De vez em quando comparo a medicina e a agronomia, coisas que podem parecer não ter nada a ver. É que a agronomia moderna (de muitas décadas, mas moderna) parece não existir sem “exames” da terra. Para tudo, pedem análise do solo. Quando trabalhei no Guia Rural Abril, há quatro décadas, ficava incomodado com isso e li um pouco sobre o assunto, em revistas antigas de agricultura, por exemplo. Havia uma nas primeiras décadas do século XX, publicada pela Secretaria da Agricultura do Estado de São Paulo e uma que era publicada pela Escola Luiz de Queiroz, de Piracicaba, depois anexada à USP.
Análise do solo, não me lembro de ter lido se existia ou se era rara, sei que havia muitas matérias dando dicas para identificar alguns problemas, como acidez (se tinha tiririca, por exemplo, era sinal de terra ácida) e um monte de coisas: uma determinada planta está com as folhas amarelas? Sinal que está faltando o micronutriente tal no solo. E assim ia. Na época do Guia Rural já havia um grupo de agrônomos “ecológicos” recuperando essas informações. Não sei que bicho deu, torço para que tenham tido sucesso. O que ficou meio claro para mim é que o modelo mais “antigo” de agronomia, de origem europeia (no caso da que tinha aqui, não era como a asiática, por exemplo), se baseava muito nesse conhecimento. Aí veio o modelo estadunidense, que começava qualquer avaliação do solo pela análise. Não faziam nada sem isso, parecia que sem a análise do solo não saberiam saber o que fazer.
Na medicina me pareceu que havia esse modelo anterior, “europeu” talvez, substituído pelo atual (estadunidense?). O modelo “antigo”, sem muitos recursos para exames, se baseava muito no diagnóstico conseguido pelo que o paciente dizia, “uma dor aqui que responde ali”...
Eu me lembrei agora de um médico que hoje seria considerado muito maluco, Dr. Silva Melo (Antônio da Silva Melo), nascido em Juiz de Fora em 1886 e falecido em 1973. Escreveu vários livros, entre eles “A superioridade do homem tropical”, e que praticava uma “medicina descolonizada”. Li muito sobre ele e me lembro de algumas coisas, como, por exemplo, não ser chegado a consultórios, preferia ser um médico itinerante, que ia à casa do paciente para a consulta. Para chegar à casa do paciente, ele ia analisando várias coisas do ambiente em que ele vivia: tinha algum córrego poluído, ou uma fábrica ou outra coisa poluindo o ar? Havia problemas sanitários na região e especialmente na casa dele? E falando na casa dele, lá dava para ver o que comia, a água que consumia... várias coisas que por si já indicavam algum problema que refletia na saúde das pessoas. E mais: via as fezes. Acho que como não existiam sanitários como hoje, devia olhar pinicos e fezes atrás de bananeiras ou moitas próximas. Pronto! Tinha aí uma porrada de informações que, complementadas pelo que o paciente dizia sentir, davam um diagnóstico adequado.
Bom, mas o que isso tudo me remete é ao meu tempo de criança, numa cidade com população de pouco mais de dois mil habitantes, mas 12.500 no município e um só médico. Hoje o Brasil tem em média 2,8 médicos por mil habitantes (claro, muito mais em São Paulo, Rio de Janeiro etc. e muito menos em vários estados, principalmente do Norte e parte sertaneja do Nordeste). A OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico) tem em média 3,5 médicos por mil habitantes e alguns países desenvolvidos chegam a 4,5 médicos por mil habitantes. Então, pegando o padrão médio brasileiro hoje, minha terra deveria ter mais de trinta médicos. Nem hoje, com mais de 17 mil habitantes acho que tem tantos médicos, mas tem o SUS e, nele, um monte de profissionais da saúde que juntos com os médicos dão uma boa assistência à população.
Como disse, era um só médico para 12.500 pessoas. A população recorria muito menos a médicos e lá não havia hospital. Quando havia casos que necessitassem tratamento hospitalar, o negócio era tentar conseguir uma internação numa santa casa de cidades maiores ali perto e, de preferência, no Hospital das Clínicas de São Paulo, uma referência nacional. Quem conseguia uma internação aqui, ficava eternamente grato, e não só ao hospital, mas ao seu criador, governador Adhemar de Barros. O pai de uns amigos da minha infância fazia tratamento no Hospital das Clínicas e tinha que vir regularmente a São Paulo, numa época que Adhemar era novamente governador e atendia no Palácio dos Campos Elíseos. Esse homem, grato a Adhemar, cada vez que vinha a São Paulo para uma consulta, trazia um queijo e uma garrafa de cachaça pro governador. E acreditem: era recebido por ele e entregava em mãos, com direito a uns minutos de conversa.
Fora esses casos, o que os doentes faziam? Tinham curandeiros e benzedeiras e além de farmacêuticos práticos. Havia três farmácias na cidade, cada uma com uma clientela fiel, e os farmacêuticos davam consultas, prescreviam e manipulavam remédios. Por causa deles me lembrei de um causo que publiquei no meu primeiro livro, “Santa Rita Velha safada”. E reproduzo integralmente o causo relacionado a isso.
A CONSULTA
Zé da Tonha apeou do cavalo e foi ajudar a mulher, meio entrevada a descer de sua égua. Amarraram os animais no poste e entraram na farmácia:
— Seu Totó, vim trazer a patroa pra mor de fazer uma consulta.
— Entrem naquela salinha, que eu vou aplicar uma injeção neste moço aqui e já vou lá falar com vocês.
— Entraram e ficaram esperando. O moço que ia tomar a injeção arregaçou o mais que pôde a manga da camisa e, do outro lado do balcão mesmo, o farmacêutico espichou o braço e desferiu-lhe uma agulha rombuda no músculo, fazendo-o arregalar os olhos de dor.
— Doeu?
— Ufa! Tá doido! Num tinha uma agulha mais fina não?
Acabada a aplicação, o farmacêutico anotou no livro de fiado e entrou na saleta de consultas.
— O que é que a senhora tem?
— Ela tá com um incômodo aqui assim — o marido respondeu por ela, indicando a altura do rim —, tem uma dor aqui que responde daqui.
— A senhora toma bastante água?
— Olha, seu Totó, até que ela num bebe muita água não — respondeu novamente o marido por ela.
E assim foi indo a consulta. O farmacêutico perguntava e o marido respondia pela esposa, falando dos seus sintomas e dos seus hábitos, até que a certa altura o farmacêutico, distraído, já não perguntava mais a ela, e sim a ele. Depois de muitas perguntas, completou:
— E a sua esposa urina com abundância?
— Não senhor. Isso não! Ela mija é com a bucetância mesmo!
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