São óbvias as semelhanças entre as vitórias eleitorais de Javier Milei, na Argentina, no último dia 19/11, e de Jair Bolsonaro, no Brasil, em outubro de 2018.
A sociedade em rota de colisão com o sistema político e a ascensão meteórica de uma liderança carismática de extrema direita, que com discurso revolucionário conseguiu transformar esse sentimento coletivo em capital eleitoral.
Menos evidente, talvez, sejam as diferenças entre esses dois fenômenos, que também são bastante relevantes. É exatamente disso que trato aqui. Acredito que esse exercício analítico seja fundamental para que possamos compreender as especificidades das crises democráticas em curso nos dois países.
Da mesma forma que o Brasil não é a Argentina, Jair Bolsonaro não é Javier Milei.
Então, vamos lá, por partes.
1°) A revolta da sociedade argentina contra o sistema político foi impulsionada por uma grave crise econômica. Era mesmo difícil imaginar que o ministro da Economia do governo que carrega nas costas uma inflação de três dígitos ao ano e 40% da população na pobreza pudesse vencer a eleição. No Brasil, a situação foi muito diferente. Nem nos piores momentos de nossa crise econômica, chegamos próximos ao que acontece na Argentina. A revolta da sociedade brasileira foi impulsionada, sobretudo, pela Operação Lava Jato, que alimentou uma semântica política fundada na anticorrupção e profundamente sedimentada no imaginário coletivo nacional, e há muito tempo.
Não existiu nada semelhante à Lava Jato na Argentina, apesar da existência de algumas práticas de lawfare que tiverem Cristina Kirchner como alvo principal.
O leitor e a leitora mais atentos provavelmente se lembram de Alberto Nisman, promotor argentino responsável pela investigação do atentado terrorista contra entidade judaica Amia e que acusou Cristina de acobertar terroristas.
Nisman ensaiou fazer na Argentina algo semelhante ao que Sergio Moro fez no Brasil: se associar à mídia hegemônica para desgastar a imagem da principal liderança do campo progressista.
Porém, a morte de Nisman em janeiro de 2015, em condições até hoje não esclarecidas, e a força do movimento peronista impediram que a lawfare argentina ganhasse a proporção e a capacidade de organização similares ao que aconteceu no Brasil.
2°) Já que não existiu na Argentina nada semelhante, em poder de destruição, à Lava Jato, o sistema partidário não foi estruturalmente abalado. Isso fica evidente quando comparamos as trajetórias recentes das direitas tradicionais de ambos os países.
Em 2018, o hoje companheiro Dr Geraldo, então no PSDB, foi destruído no 1° turno das eleições. O partido político que governou o país por dois mandatos na década de 1990 e que por anos hegemonizou a direita brasileira foi reduzido a pó, a míseros 3.59% dos votos. Antes de derrotar o PT no segundo turno da disputa, Bolsonaro derrotou a direita tradicional.
Na Argentina, aconteceu algo completamente diferente. A direita tradicional, liderada pelo ex-presidente Maurício Macri e representada nas urnas por Patrícia Bullrich, saiu do 1° turno com relevantes 23,85% dos votos. Não demorou para que a candidata da chapa “Juntos por el cambio” declarasse seu apoio a Javier Milei.
Na verdade, fez mais que isso.
Com Macri trabalhando nos bastidores, a direita tradicional pautou a campanha de Milei no segundo turno, disciplinando suas idiossincrasias, fazendo-o até mesmo recuar nas propostas mais polêmicas, como a venda de órgãos e a liberação do porte de armas.
Diferente de Bolsonaro, Milei venceu junto com a direita tradicional e terá que governar com ela. Até porque, na Argentina não existe “centrão”. As forças políticas representadas no Poder Legislativo possuem perfil ideológico mais definido do que temos aqui no Brasil.
São grandes as possibilidades de que Milei seja engolido por frações das “castas” que prometeu derrotar.Talvez já tenha sido.
3°) Diferente do que aconteceu no Brasil, a crise argentina não foi militarizada. Apesar de Milei atenuar os crimes da ditadura militar e a sua vice, Victoria Villarruel, ter proposto revisar as indenizações às vítimas da ditadura, o negacionismo não está no primeiro plano de seu discurso. Os militares não terão protagonismo no governo, assim como não tiveram na campanha. Bem diferente aconteceu com Bolsonaro, como bem sabemos.
Enquanto Bolsonaro era um parlamentar conhecido no baixo clero da Câmara dos Deputados como defensor da ditadura, Milei é deputado de primeiro mandato. Nesse sentido, o eleito argentino é muito mais outsider do que era o eleito brasileiro em 2018.
Mesmo assim, não deixa de causar surpresa que a Argentina tenha elegido uma chapa que possui algum grau de discurso negacionista em relação à ditadura militar. Durante muitos anos, acreditamos que a justiça de transição teria sido capaz de consolidar no país vizinho uma cultura democrática mais sólida. Temos aí um tema, entre tantos outros, que precisará ser reexaminado.
4°) Milei disse que pretende revogar a descriminalização do aborto. Porém, a dita "pauta dos costumes" não lhe é tão central como é para Bolsonaro. Na Argentina, as igrejas evangélicas neopentencostais não possuem, nem de perto, a mesma influência que têm no Brasil. Por lá, a Igreja Católica inspirada na teologia da libertação ainda tem grande prestígio junto às comunidades pobres.
A mesma reflexão pode ser feita sobre a pauta da segurança pública. Como na Argentina esse não é um drama social tão grande como no Brasil, Milei não tem nessa agenda um pilar de sustento para sua popularidade. Enquanto Bolsonaro adotou a arminha como signo de identidade política, em direta alusão à defesa do “direito de defesa do cidadão de bem”, Milei escolheu a motosserra, em referência a seu projeto anarcocapitalista de reduzir a quase nada o tamanho do Estado.
Acredito que Milei terá pela frente ainda mais dificuldades do que aquelas que Bolsonaro enfrentou. Falta ao presidente eleito argentino repertórios que foram fundamentais para manter a popularidade de seu aliado brasileiro em níveis politicamente sustentáveis, e até hoje.
Diferente de Bolsonaro, Milei não pode esperar muito das pautas dos costumes e da segurança pública. É refém de uma única agenda: a economia. Se não conseguir entregar soluções rápidas que impactem diretamente o cotidiano da população, verá sua popularidade derreter, tal como aconteceu com seus dois últimos antecessores. Tanto Maurício Macri como Alberto Fernandez foram derrotados pela crise econômica que não conseguiram resolver.
De resto, a vitória de Milei é mais um recado que precisa ser devidamente compreendido pelas classes políticas democráticas do mundo inteiro. “Democracia” não pode ser apenas um conceito, um valor normativo, uma abstração. Precisa se materializar em experiências concretas de bem-estar social. Comer bem, morar e trabalhar com dignidade precisam ser tratados como direitos democráticos tão fundamentais quanto o direito ao voto e à liberdade individual.
A sobrevivência da democracia representativa dependerá de sua capacidade de, pelo menos, moderar o apetite do capitalismo pós-industrial. Para quem está na miséria, pouco importam as diferenças formais entre democracias e ditaduras.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.