O varejo europeu – Por Ana Beatriz Prudente Alckmin
"Com um mercado maduro, alto grau de escolaridade e envelhecimento populacional, a Europa se torna referência global em tendências de consumo"
O varejo europeu vive uma transformação intensa, moldada por forças tecnológicas, sociais, ambientais e econômicas. Com um mercado maduro, alto grau de escolaridade e envelhecimento populacional, a Europa se torna referência global em tendências de consumo.
Entre as principais forças que impactam o setor estão a inovação tecnológica, como redes sociais e internet das coisas, mudanças no comportamento do consumidor, que agora valoriza propósito e sustentabilidade, transformações econômicas, como taxas de juros e o crescimento da classe média, além de alterações regulatórias, globalização, crises sanitárias e instabilidades geopolíticas.
A Europa enfrenta desafios demográficos significativos, com uma taxa de fertilidade média de aproximadamente 1,5 filhos por mulher, número insuficiente para manter a população. Isso impulsiona fluxos migratórios, tanto de refugiados quanto de trabalhadores, provocando alterações profundas no perfil populacional e nos padrões de consumo.
Ainda assim, o continente é líder em inovação. Dezesseis dos vinte e cinco países mais inovadores do mundo estão na Europa, com destaque para Suécia, Dinamarca e Suíça. O modelo educacional suíço, por exemplo, integra fortemente o mercado com soluções práticas como trabalhos de conclusão de curso voltados para problemas reais das empresas.
A renda per capita média europeia gira em torno de 33 mil dólares, com Irlanda, Suíça, Noruega, Dinamarca, Holanda, Áustria e Alemanha entre os países mais ricos. A Polônia desponta como destaque no leste europeu.
Gigantes do varejo europeu como Carrefour, Grupo Casino, Leroy Merlin (Grupo Adeo), Decathlon, Aldi, Lidl, Tesco, Inditex (Zara), H&M e Ikea têm forte presença ou influência no Brasil. Marcas como Tok&Stok e Etna adotaram conceitos semelhantes aos da Ikea, como design acessível, autosserviço e montagem própria, embora suas inspirações incluam também outros modelos europeus e norte-americanos.
A sustentabilidade ocupa papel central no consumo europeu. Marcas como Ikea, Veja e H&M promovem economia circular, produtos biodegradáveis, reciclagem instantânea e reaproveitamento de roupas. Além disso, empresas globais como ThredUp, dos Estados Unidos, e Native Shoes, do Canadá, também refletem práticas sustentáveis alinhadas às expectativas do consumidor europeu.
O ambiente digital europeu é altamente desenvolvido, com destaque para e-commerce, pagamentos digitais, delivery de alimentos e forte influência das redes sociais, especialmente entre a Geração Z. A jornada de compra é omnichannel, começa no digital, migra para o físico e retorna ao online, exigindo integração total das empresas.
A confiança do consumidor se apoia fortemente em influenciadores digitais, atrás apenas de amigos e familiares. Marcas como o Grupo Boticário, por exemplo, utilizaram influenciadoras locais com sucesso em mercados como Portugal.
A Europa avança também na criação de uma identidade digital integrada, que conectará dados de consumo, turismo e educação para facilitar serviços, pagamentos e segurança digital.
A demanda por produtos saudáveis e sustentáveis cresce. Alimentos orgânicos e veganos, suplementos voltados ao bem-estar e à longevidade, e embalagens ecológicas ganham espaço. Aplicativos como Unmind, focado em saúde mental, Peloton, de atividade física interativa, e Too Good To Go, que combate o desperdício alimentar, refletem esse novo comportamento.
A experiência da loja física permanece essencial. Starbucks, Eataly e Galeries Lafayette são exemplos de espaços que combinam ambientação, design, som e aroma para enriquecer a experiência do consumidor. A marca dinamarquesa Normal, por sua vez, aposta num percurso imersivo obrigatório dentro da loja, estratégia que se revelou bem-sucedida internacionalmente. Outro exemplo é o Time Out Market, em Lisboa, que mistura gastronomia, cultura local e comércio.
A autenticidade e o propósito também ganham força nas campanhas de grandes marcas. Dove utiliza rostos reais, marcas como Skims e Parade valorizam corpos diversos, e a Nike ousou com a campanha de Colin Kaepernick: “Acredite em algo, mesmo que isso custe tudo”.
Entre os movimentos mais recentes do setor destacam-se:
Inditex (Zara) viu suas vendas entre 1º de maio e 9 de junho crescerem 6%, abaixo das expectativas do mercado, refletindo uma desaceleração frente ao ano anterior. A reação negativa levou a uma queda de 4,6% nas ações da empresa.
River Island, no Reino Unido, passa por uma reestruturação que pode impactar até 230 lojas e mais de 5.500 empregos. A empresa registrou prejuízo de 33,2 milhões de libras em 2023 e contratou a PwC para revisar seu plano estratégico.
Fnac-Darty, na França, após adquirir a italiana Unieuro, busca ampliar sua presença na Europa. Suas metas até 2030 incluem alcançar 4 milhões de assinantes, margem operacional superior a 3%, fluxo de caixa livre de 1,2 bilhão de euros e payout mínimo de 40% para os acionistas.
Deutsche EuroShop, na Alemanha, emitiu seu primeiro green bond, no valor de 500 milhões de euros, com vencimento em 2030. A procura superou sete vezes a oferta, indicando forte interesse do mercado por ativos sustentáveis.
Esses dados reforçam a complexidade e o dinamismo do varejo europeu, um setor que se reinventa constantemente diante de transformações globais. A capacidade de adaptação, a incorporação de tecnologias, a centralidade do propósito e a atenção ao comportamento do consumidor são hoje pilares inegociáveis para qualquer operação que queira prosperar na Europa e, por influência, em outros mercados ao redor do mundo.
As novas regras que estão transformando o varejo europeu: CSRD e CSDDD
O avanço das práticas sustentáveis na Europa não é mais uma escolha, mas uma exigência regulatória que está mudando profundamente a forma como empresas operam no continente e, consequentemente, no mundo. No centro dessa transformação estão duas diretrizes fundamentais da União Europeia: a CSRD e a CSDDD. Elas fazem parte do Green Deal Europeu, o ambicioso plano climático da União Europeia que tem como meta tornar o continente neutro em carbono até 2050. Mais do que uma agenda ambiental, essas diretrizes representam uma transição econômica que exige mudanças reais nos modelos de produção, consumo e governança das empresas.
Propostas pela Comissão Europeia, braço executivo da União Europeia, essas normas foram criadas para garantir que empresas contribuam ativamente com a transição ecológica e também respeitem os direitos humanos em toda a sua cadeia de valor. A primeira delas, a CSRD, sigla para Corporate Sustainability Reporting Directive, é a Diretiva de Relato de Sustentabilidade Corporativa. Ela obriga empresas a divulgarem, de forma padronizada e transparente, como suas atividades impactam o meio ambiente, a sociedade e também sua própria saúde financeira. Um dos conceitos-chave dessa diretriz é a dupla materialidade, que exige que as empresas considerem tanto como as questões ambientais, sociais e de governança impactam seus resultados, quanto como suas próprias operações afetam o planeta e a sociedade.
A CSRD entrou em vigor em janeiro de 2024 para empresas que já eram abrangidas pela antiga NFRD e será expandida progressivamente até 2028, incluindo empresas estrangeiras que tenham receita superior a 150 milhões de euros dentro da União Europeia. Na prática, isso significa que qualquer grande grupo global que opere no mercado europeu, seja do setor de moda, tecnologia, alimentação ou outros, precisará seguir essas regras rigorosas de transparência e responsabilidade socioambiental.
Já a CSDDD, que significa Corporate Sustainability Due Diligence Directive, ou Diretiva de Dever de Diligência em Sustentabilidade Corporativa, vai além da obrigação de relatar. Ela exige ação. As empresas precisam mapear, identificar, prevenir e mitigar riscos ambientais e violações de direitos humanos em toda sua cadeia de valor, desde a extração da matéria-prima até a venda final dos produtos. Isso torna a responsabilidade muito mais abrangente, saindo do ambiente interno da empresa e alcançando fornecedores, parceiros e toda a rede produtiva, onde quer que ela esteja no mundo.
A CSDDD teve seu acordo político firmado em 2024 e sua implementação ocorrerá de forma escalonada, à medida que os países membros da União Europeia formalizem e adotem a diretriz em suas legislações nacionais. Assim como a CSRD, ela se aplica a grandes empresas europeias e também a empresas estrangeiras que possuem operações relevantes dentro do bloco.
Embora diferentes nos seus focos, as duas diretrizes se complementam. Enquanto a CSRD foca em relatar de forma precisa os impactos sociais, ambientais e financeiros, a CSDDD exige que as empresas ajam efetivamente para evitar, reduzir e, quando necessário, reparar esses impactos. Trata-se de um novo patamar de responsabilidade empresarial, onde não basta mais comunicar boas práticas, é preciso comprovar e agir.
A rastreabilidade, portanto, deixa de ser uma opção e se torna uma obrigação. As empresas precisam ter controle total sobre a origem dos seus produtos e processos, desde o cultivo de matérias-primas como algodão até a entrega ao consumidor final. Essa mudança tem um impacto enorme sobre setores como o varejo e, especialmente, sobre a indústria da moda, que historicamente enfrenta desafios relacionados à sustentabilidade e aos direitos trabalhistas na cadeia de produção.
Na prática, isso significa que conceitos como moda regenerativa, produção ética e transparência não são mais diferenciais de mercado, mas sim exigências legais para operar no território europeu. A Europa mostra que é possível unir criatividade, inovação e responsabilidade, estabelecendo um novo padrão global de sustentabilidade. A mensagem é clara. Sustentabilidade não é mais tendência, é dever. Empresas que não se adaptarem a esse cenário estarão fora do futuro do mercado europeu e, por consequência, perderão competitividade também em outros mercados ao redor do mundo.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum