Como o Grande Salto Adiante pavimentou a ascensão da potência asiática
Entre avanços e tragédias, o movimento redefiniu a trajetória chinesa
O Grande Salto Adiante foi uma ambiciosa campanha econômica e social promovida pelo Partido Comunista da China (PCCh) entre 1958 e 1962, com o objetivo de acelerar rapidamente a industrialização e a coletivização do país, transformando a China em uma potência socialista moderna em poucos anos.
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Essa estratégia envolveu a criação de comunas populares rurais e campanhas massivas para ampliar a produção de aço e alimentos. No entanto, metas irreais, má gestão, exageros nos relatórios oficiais e falta de atenção às condições concretas resultaram em graves desequilíbrios econômicos e em uma fome devastadora que provocou milhões de mortes, marcando um dos períodos mais dramáticos da história chinesa.
O PCCh reconhece o Grande Salto Adiante como uma experiência histórica marcada por erros profundos e consequências desastrosas, mas também como um processo fundamental que gerou lições importantes e contribuiu para orientar a trajetória que levou a China à condição de segunda maior economia do mundo.
Excessos de “esquerdismo”
O PCCh admite que o movimento esteve marcado por sérios erros políticos e econômicos, especialmente os chamados excessos do “esquerdismo” — termo que designa práticas, políticas e atitudes radicalmente dogmáticas e inflexíveis, consideradas além dos limites da aplicação adequada do marxismo-leninismo à realidade concreta.
Esses “erros esquerdistas” se manifestaram por meio do excesso de idealismo e voluntarismo, com tentativas precipitadas de avançar rapidamente sem considerar as condições materiais reais. Isso incluiu a rejeição do pragmatismo em favor de slogans e dogmas, a negligência da análise científica e prática das condições locais e a superestimação das capacidades produtivas.
Além disso, a coletivização forçada da agricultura e a definição de metas irreais sem avaliar o desenvolvimento real das forças produtivas comprometeram o sucesso das políticas. Houve uma centralização rígida e autoritária do comando, que desconsiderou as opiniões das bases e trabalhadores. Para piorar, a prática de exagerar e até falsificar dados em relatórios oficiais mascarou os problemas reais, atrasando a tomada de medidas corretivas.
Durante o Grande Salto Adiante, o PCCh cometeu erros ideológicos relacionados a abordagens “ultraesquerdistas” e dogmáticas, como a superestimação da capacidade produtiva e a adoção de métodos inadequados para o contexto econômico do país.
O planejamento irrealista e as metas exageradas também marcaram o período, com distorções nos relatórios de produção que levaram a decisões equivocadas e comprometeram os resultados esperados.
A imposição acelerada e rígida da coletivização da agricultura, por meio das comunas populares, revelou-se inadequada e mal administrada, contribuindo para o agravamento da crise.
Embora fatores naturais tenham contribuído para a situação, o PCCh reconhece que os erros humanos foram determinantes para a gravidade da crise enfrentada.
O período resultou em uma severa fome que causou milhões de mortes — uma tragédia considerada uma amarga lição histórica. Em resposta, o PCCh adotou a autocrítica marxista como ferramenta fundamental para reconhecer suas falhas internas e corrigir o rumo do país, mostrando disposição para aprender com os erros e promover mudanças estruturais.
Fatores naturais que agravaram o Grande Salto Adiante
Secas severas em 1959 e 1960: Vastíssimas áreas do norte da China enfrentaram secas prolongadas, especialmente nas províncias de Hebei, Shanxi e Shaanxi, prejudicando o cultivo de trigo e milho, essenciais para a alimentação local.
Inundações catastróficas em 1959 e 1960: Regiões do sul e do rio Yangtzé, como as províncias de Hubei, Anhui e Jiangsu, sofreram enchentes severas provocadas por chuvas intensas, destruindo plantações e sistemas de irrigação.
Infestações de gafanhotos e outras pragas em 1959: Diversas regiões agrícolas foram afetadas por pragas, que se espalharam devido à falta de controle agrícola durante a coletivização forçada, causando perdas significativas nas colheitas.
Oscilações climáticas extremas: Entre o final dos anos 1950 e início dos 1960, ondas de frio e calor atípicas prejudicaram o ciclo agrícola, dificultando a recuperação da produção.
Esses fenômenos naturais reduziram a produção agrícola, mas seus efeitos foram amplificados por erros humanos, como a rigidez das comunas, o abandono de técnicas tradicionais e a superestimação das capacidades produtivas. Assim, o PCCh e a historiografia oficial enfatizam que a gravidade da crise se deveu principalmente às falhas de gestão e planejamento.
A dimensão da mobilização e o impacto econômico
Segundo artigo da doutora em economia Paula Nabuco, da Universidade Federal Fluminense (UFF), em menos de um ano, mais de 500 milhões de camponeses foram organizados em cerca de 26 mil comunas populares, eliminando totalmente a propriedade privada. Essas comunas agregavam todas as atividades rurais, incluindo produção agrícola, cuidados sociais e educação.
O plano visava dobrar a produção agrícola em 1958, mas a produção real foi inicialmente superestimada, com relatórios anunciando 375 milhões de toneladas, depois corrigidos para cerca de 200 milhões — reflexo dos exageros e falsificações do período.
Na produção siderúrgica, cerca de 1 milhão de fornos de quintal foram espalhados pelo país, mas apresentaram baixa eficiência e qualidade. O setor industrial buscava integrar camponeses nas atividades fabris, inclusive transferindo fábricas para zonas rurais, preparando mão de obra para o salto industrial previsto no Terceiro Plano Quinquenal.
No campo alimentar, a fome foi devastadora. A disponibilidade de grãos por habitante caiu de 207 kg em 1957 para 154 kg em 1961. Estima-se que entre 20 e 30 milhões de pessoas morreram de fome, com as regiões mais pobres — Sichuan, Gansu, Anhui e Shandong — sofrendo as piores perdas.
Além da crise alimentar, o Grande Salto Adiante foi marcado por tensões políticas, com críticas internas duramente reprimidas. O marechal Peng Dehuai, que criticou o plano em 1959, foi destituído e rotulado como direitista.
Esses números evidenciam o tamanho da mobilização e as consequências catastróficas da política que buscou acelerar a transformação econômica da China, cujas lições moldaram profundamente o futuro do país.
Transformação institucional que moldou a China contemporânea
Além de acelerar a industrialização e coletivização, o Grande Salto Adiante representou uma profunda transformação institucional cujos efeitos reverberam até hoje. Segundo análise do professor Xu Chenggang, da Escola de Negócios do Rio Yangtzé, esse período marcou uma ruptura sistemática com o modelo stalinista e foi a origem dos mecanismos de competição regional e experimentos locais que estruturam a governança chinesa contemporânea.
Durante o movimento, o poder foi radicalmente descentralizado: 88% das empresas sob controle do governo central foram transferidas para autoridades locais, imitando antigas práticas imperiais chinesas. Assim, formou-se um sistema paradoxalmente autoritário no plano político, com centralização ideológica e controle rígido de pessoal pelo Partido, mas altamente descentralizado na gestão econômica e administrativa.
Essa descentralização impulsionou uma intensa competição regional baseada em metas quantitativas — como produção de aço e rendimento agrícola — que substituiu tanto o planejamento central detalhado quanto os mecanismos de mercado. A ausência de supervisão eficaz, combinada com a repressão a opiniões divergentes, resultou em distorções de dados, exageros e, finalmente, na crise econômica e humanitária da grande fome.
Paralelamente, foram criadas as comunas populares, unidades coletivas que integravam agricultura, indústria, comércio, educação e funções militares, eliminando a propriedade privada e integrando a vida social e econômica em estruturas autossuficientes. Essas comunas também serviram de base para posteriores reformas econômicas locais, inaugurando a experimentação regional que permanece presente na China pós-reformas.
No plano político, o enfraquecimento dos freios e contrapesos, a eliminação dos controles internos e a perseguição a dissidentes fortaleceram o sistema totalitário, concentrando ainda mais poder nas mãos de Mao Zedong. Essa configuração institucional não apenas contribuiu para o fracasso do Grande Salto Adiante, mas também preparou o terreno para a Revolução Cultural.
O Grande Salto Adiante foi uma transformação institucional crucial que definiu os contornos da governança e da economia chinesas modernas, deixando à mostra as tensões entre centralização política e descentralização econômica que ainda influenciam o desenvolvimento do país.
O que a China aprendeu com o Grande Salto Adiante?
O PCCh reconheceu que o Grande Salto Adiante revelou problemas graves de planejamento irrealista, centralização autoritária, falta de supervisão e exageros nos relatórios, além da rigidez ideológica do “esquerdismo”. A experiência mostrou a importância de:
- Planejamento baseado em condições reais e científicas;
- Flexibilidade nas políticas, com avaliação e correção contínuas;
- Valorização da agricultura familiar e produção local;
- Combate à burocracia, falsificação de dados e incentivo à transparência;
- Descentralização econômica acompanhada de mecanismos efetivos de supervisão;
- Abandono do dogmatismo e maior pragmatismo na condução das reformas.
Políticas posteriores que refletiram essas lições
Reforma Agrária e Introdução do Sistema de Responsabilidade Rural (final dos anos 1970 e 1980)
Após o fracasso da coletivização extrema, a China adotou o sistema de responsabilidade familiar, que devolveu a autonomia aos camponeses para gerir suas parcelas de terra, desde que cumprissem metas de produção com o Estado. Essa política promoveu enorme aumento da produtividade agrícola e melhorou o padrão de vida rural.
Plano de Reforma e Abertura (1978 em diante)
Sob a liderança de Deng Xiaoping, o país adotou o pragmatismo e “buscar a verdade nos fatos”, abandonando o dogmatismo ideológico do período anterior. A abertura gradual da economia, atração de investimentos estrangeiros e criação de zonas econômicas especiais foram estruturadas com planejamento realista, avaliação constante e flexibilidade.
Mecanismos de Supervisão e Transparência
Após os exageros e falsificações de dados do Grande Salto, a China implementou sistemas rigorosos de coleta e verificação de informações, aprimorando órgãos estatísticos e criando mecanismos para evitar distorções. Por exemplo, o estabelecimento do Instituto Nacional de Estatísticas da China e políticas de auditoria e transparência.
Valorização da Agricultura Familiar e Diversificação Rural
Reconhecendo a importância da agricultura familiar, as políticas posteriores incentivaram a diversificação da produção, cooperativas mais flexíveis e programas para melhorar infraestrutura rural, educação e saúde, contrastando com o modelo rígido das comunas.
O PCCh aprendeu com o Grande Salto Adiante que o desenvolvimento deve ser gradual, baseado em dados reais, flexível e supervisionado, com políticas que respeitem as condições locais e promovam autonomia produtiva.
Essas lições fundamentaram as reformas econômicas iniciadas no final dos anos 1970, que transformaram a China em uma potência econômica global, evitando repetir os erros do passado.