A China é uma democracia? Entenda o sistema político chinês
Potência asiática se autodefine como democrática, mas seu sistema político difere significativamente dos modelos liberais ocidentais.
A China afirma praticar uma "democracia popular em todo o processo"— um modelo próprio que combina estabilidade, participação contínua e centralização política. Diferente das democracias liberais do Ocidente, essa abordagem enfatiza a participação constante dos cidadãos em diversas etapas da governança, como a formulação de políticas públicas, as consultas legislativas e os mecanismos de supervisão social.
Para o governo chinês, trata-se de uma democracia adaptada à realidade histórica, cultural e social do país, com foco na estabilidade institucional e no bem-estar coletivo.
Segundo Pequim, não existe um único modelo legítimo de democracia. A versão chinesa se propõe como uma alternativa funcional ao modelo ocidental, baseada no desempenho governamental, na centralização estratégica e na capacidade do Estado de entregar resultados concretos à população.
A chamada "democracia em todo o processo" integra elementos de democracia eleitoral e democracia consultiva, combinando eleições locais com consultas públicas, deliberação legislativa, gestão administrativa e mecanismos de controle estatal.
Um exemplo desse modelo são os processos de consulta legislativa: entre 2017 e 2022, 187 projetos de lei foram submetidos à consulta pública, recebendo mais de 3 milhões de sugestões de aproximadamente 1,1 milhão de cidadãos. Esse mecanismo visa incorporar, ainda que sob a condução do Partido Comunista Chinês (PCCh), as opiniões da sociedade nas decisões estratégicas do Estado.
Durante as Duas Sessões — reuniões anuais da Assembleia Popular Nacional (APN) e da Conferência Consultiva Política do Povo Chinês (CCPPCh) —, representantes e conselheiros políticos apresentam propostas sobre temas centrais da vida social, como educação, saúde, distribuição de renda, moradia, assistência a idosos e cuidados infantis.
O modelo também prevê um sistema de supervisão abrangente, com atribuições claramente definidas, que se estende a todos os níveis do governo. Essa estrutura tem como objetivo combater o abuso de poder, fortalecer a disciplina administrativa e assegurar que o exercício do poder público atenda aos interesses do povo.
Como funciona o sistema político chinês?
A República Popular da China é governada pelo PCCh, que detém o monopólio do poder político desde 1949. Embora o país reconheça a existência de outros partidos políticos, todos atuam sob a liderança do PCCh, sem exercer oposição efetiva — ao contrário do que ocorre nas democracias liberais, onde há competição partidária e alternância de poder.
O sistema legislativo é estruturado em múltiplos níveis de assembleias populares, tendo no Congresso Nacional do Povo (CNP) seu órgão máximo. Os membros dessas assembleias são eleitos por meio de um sistema indireto e amplamente controlado pelo partido, o que reforça a centralização política.
Além do Legislativo, o PCCh controla diretamente o Judiciário, os meios de comunicação e as Forças Armadas, concentrando as principais funções do Estado em uma única estrutura partidária. A condução das decisões políticas está nas mãos do Comitê Permanente do Politburo, o núcleo de poder mais alto do país, responsável por traçar as diretrizes estratégicas da China.
O papel do PCCh
Um dos principais equívocos dos ocidentais é comparar o PCCh a partidos políticos como o PT ou o PL no Brasil, ou os Republicanos e Democratas nos EUA. Essas instituições cumprem funções diferentes.
O PCCh é a espinha dorsal do Estado chinês e exerce controle sobre todos os aspectos do poder estatal e social. Ele nomeia os principais cargos do Estado, do Judiciário, das universidades, das empresas estatais e das Forças Armadas.
Nos sistemas democráticos liberais, os partidos disputam eleições, representam diferentes correntes ideológicas e podem ser substituídos. Há separação entre partido e governo. Na China, o PCCh detém o monopólio legal do poder. Os outros partidos são subordinados à Frente Unida e não há oposição institucionalizada.
A legitimidade do PCCh é baseada na revolução de 1949 e na capacidade de promover estabilidade, crescimento e soberania nacional, e não em eleições abertas. Seu funcionamento é altamente hierarquizado, com disciplina interna rigorosa e lealdade ideológica.
Eleições a cada cinco anos
Na China, as eleições ao nível de condado e município ocorrem a cada cinco anos e representam a única instância em que a população escolhe diretamente seus representantes para as Assembleias Populares Locais, os órgãos legislativos de base.
Em 2023, esse processo envolveu mais de 1 bilhão de eleitores, segundo informações do governo chinês. Participam do pleito cidadãos com 18 anos ou mais. As Assembleias Populares são responsáveis por aprovar leis locais, supervisionar o governo e nomear ou destituir autoridades executivas locais.
A base teórica da democracia chinesa
O modelo político chinês, definido como uma “democracia popular em todo o processo”, é sustentado por uma base teórica que combina marxismo-leninismo, pragmatismo político e tradições culturais chinesas. A concepção de democracia na China foi moldada por sucessivas lideranças:
- Mao Zedong via a democracia como a participação das massas sob a direção do Partido, com foco na mobilização ideológica e na luta de classes.
- Deng Xiaoping priorizou o desempenho econômico e a estabilidade como fundamentos da legitimidade política, mantendo o monopólio do poder pelo Partido enquanto abria a economia.
- Xi Jinping formalizou, em 2021, o conceito de “democracia em todo o processo”, uma resposta ao modelo liberal ocidental. Essa abordagem busca integrar elementos de democracia eleitoral e consultiva, com participação contínua da população nas etapas de formulação, deliberação, implementação e supervisão de políticas públicas. O conceito foi incluído na Constituição do PCCh em 2022.
Apesar da base oficial marxista, o modelo chinês também se apoia em elementos históricos do confucionismo, como a valorização da hierarquia moral, da harmonia e da meritocracia. O antigo sistema de exames imperiais (keju), que selecionava os melhores para servir ao Estado, ecoa hoje na promoção de quadros dentro do PCCh, baseada em mérito, desempenho e lealdade.
Wang Huning: o arquiteto da democracia chinesa

O principal formulador da doutrina política que sustenta essa concepção de democracia é Wang Huning, membro do Comitê Permanente do Politburo e presidente da CCPPCh. Considerado o principal ideólogo do PCCh nas últimas três décadas, Wang teve papel central nos governos de Jiang Zemin (1989–2002), Hu Jintao (2002–2012) e Xi Jinping (2012–presente).
Sua maior contribuição recente é a elaboração teórica da “democracia popular em todo o processo”, promovida por Xi como resposta às críticas ocidentais. Para Wang, a democracia não deve se restringir ao voto periódico, mas envolver consultas públicas, deliberações políticas estruturadas e mecanismos permanentes de supervisão popular, todos sob direção do Partido.
Wang sustenta que modelos políticos devem ser moldados conforme as características culturais e históricas de cada país. No caso chinês, isso implica fortalecer a centralização, garantir a estabilidade e legitimar o governo pela sua capacidade de entregar desenvolvimento, bem-estar e ordem social, em vez de eleições competitivas e multipartidarismo.

Essa visão se articula de forma contundente em sua obra mais conhecida, “América Contra América” (1991), escrita após uma viagem de estudos aos EUA. No livro, Wang descreve as contradições do sistema estadunidense, como desigualdade crescente e tensões raciais; individualismo desagregador que fragiliza a coesão social; desintegração moral, alienação e perda de valores comunitários; e instabilidade política provocada por polarização e excesso de liberdade sem responsabilidade coletiva.
Segundo Wang, a China deve aprender com os avanços técnicos do Ocidente, mas rejeitar seu modelo institucional, considerado incapaz de sustentar um projeto nacional coerente.
Wang também incorpora o confucionismo em sua teoria, valorizando a governança ética, a meritocracia e a harmonia. A elite do Partido deve ser moralmente íntegra e competente, responsável por guiar a sociedade com estabilidade, disciplina e resultados — não por meio de disputas eleitorais abertas.
Combinando marxismo-leninismo, confucionismo e pragmatismo político, Wang Huning consolida uma narrativa segundo a qual a China oferece um modelo legítimo e alternativo de democracia — centrado em desempenho, ordem, soberania cultural e participação institucionalizada sob liderança do Partido.
Em um cenário global de crise nas democracias liberais, sua teoria posiciona o sistema chinês não apenas como uma exceção funcional, mas como proposta ativa de um novo paradigma de governança para o século XXI.
Um sistema moldado por sua trajetória histórica
O sistema político chinês não resultou de um processo de democratização, mas de uma revolução socialista que rompeu com o passado imperial. A cronologia ajuda a entender esse percurso:
- Até 1911: Dinastias imperiais, sob regime confucionista e centralizado.
- 1911: Queda da dinastia Qing e fundação da República.
- 1921–1949: Guerra civil entre o Kuomintang e o PCCh.
- 1949: Proclamação da República Popular da China por Mao Zedong.
- Período maoísta: Reformas agrárias, coletivização, Grande Salto Adiante e Revolução Cultural.
- A partir de 1978: Reformas econômicas sob Deng Xiaoping, sem abertura política.
- Século XXI: Consolidação do crescimento e fortalecimento da centralização sob Xi Jinping.
Hoje, a China se apresenta como uma democracia popular em que o bem-estar coletivo e a estabilidade política prevalecem sobre os direitos individuais e a competição multipartidária.
A China e o Iluminismo
O Iluminismo, movimento intelectual que floresceu na Europa no século XVIII, é reconhecido como a base filosófica das democracias liberais contemporâneas. Seus principais pilares — liberdade, igualdade, racionalidade, separação dos poderes e soberania popular — moldaram profundamente os sistemas políticos do Ocidente. No entanto, um aspecto menos explorado dessa história é a influência indireta da China sobre o pensamento iluminista.
Durante a dinastia Ming, missionários jesuítas como Matteo Ricci (1552–1610), viveram na China e enviaram à Europa relatos detalhados sobre a organização política, social e cultural do país. Essas descrições apresentavam uma sociedade governada por uma elite letrada e moralmente orientada, sem uma religião institucional dominante, mas pautada por princípios confucionistas de ética, hierarquia e meritocracia.
Essas ideias chegaram à Europa em um momento de efervescência crítica contra as monarquias absolutistas e a hegemonia da Igreja. Filósofos como François-Marie Arouet (1694–1778), o Voltaire, se encantaram com o modelo confucionista, que associavam à racionalidade e à virtude pública. “Enquanto os nossos reis eram analfabetos e os nossos sacerdotes, fanáticos, os chineses já praticavam a moral da razão”, escreveu o pensador francês, em uma crítica direta ao atraso político e moral da Europa cristã.
O sistema de exames imperiais chinês, que selecionava burocratas com base no mérito e no conhecimento dos clássicos, foi apontado como um exemplo de administração racional. Charles-Louis de Secondat (1689–1755), o Montesquieu, embora mais cauteloso que Voltaire, também se debruçou sobre o chamado “despotismo oriental” para contrastar com sua proposta de separação dos poderes.
A China, portanto, tornou-se referência — não como uma democracia, mas como exemplo de uma sociedade que, segundo os europeus, funcionava com ordem, mérito e racionalidade sem depender de dogmas religiosos. Essa imagem foi essencial para que os iluministas pudessem defender reformas seculares e republicanas sem parecer subversivos.
Essa circulação de ideias integrou um movimento mais amplo de curiosidade global, que envolvia também o Islã, a Índia e os povos indígenas das Américas. A China, nesse contexto, ofereceu um modelo alternativo de civilização moral e estável, usado como argumento filosófico contra os excessos da monarquia e da religião europeias.
Embora a China não tenha vivenciado um Iluminismo nos moldes ocidentais, passou por movimentos similares. O Movimento da Nova Cultura (1915–1923), por exemplo, inspirou-se em ideias ocidentais como ciência, democracia e crítica ao confucionismo tradicional. Já as reformas da dinastia Qing, no século XIX, buscaram modernizar o país sem romper com suas raízes culturais.
Iluminismo e democracia: como as ideias moldaram o Ocidente
O Iluminismo não apenas abriu caminho para o pensamento moderno, mas também lançou as bases conceituais das democracias contemporâneas:
- Soberania popular: Jean-Jacques Rousseau (1712–1778) afirmava que todo poder legítimo emana do povo, ideia central nas democracias representativas.
- Separação dos poderes: Montesquieu propôs a divisão entre Executivo, Legislativo e Judiciário como forma de limitar abusos de poder — um princípio constitucional adotado mundialmente.
- Direitos individuais: Liberdade de expressão, de culto e direito à propriedade tornaram-se fundamentos das constituições modernas.
- Racionalismo e laicidade: A razão passou a ser o critério para as leis e a governança, promovendo Estados seculares.
- Igualdade e universalismo: A crença em direitos naturais universais sustentou o sufrágio universal e os direitos civis.
Revoluções como a dos EUA (1776) e a Francesa (1789) foram diretamente inspiradas por esses valores iluministas, consagrando a cidadania, o voto e a limitação do poder estatal como bases do governo legítimo.
Modelo de democracia em disputa
O conceito de “democracia de processo integral” promovido por Pequim desafia diretamente os parâmetros tradicionais do Ocidente, que associam democracia essencialmente a eleições multipartidárias, alternância de poder, imprensa livre e garantias individuais inalienáveis. Para governos, instituições e analistas liberais, um sistema sem competição política real não pode ser chamado de democrático em sentido pleno.
Por outro lado, a China argumenta que a legitimidade de um governo não depende exclusivamente da forma, mas também da eficácia: um regime que promove estabilidade, reduz a pobreza, impulsiona o crescimento e responde às necessidades da maioria pode — e deve — reivindicar sua própria definição de democracia. Para Pequim, o sucesso econômico e a coesão social são indicadores mais concretos de governança responsável do que a simples realização de eleições regulares.
Essa divergência revela mais do que um debate sobre conceitos. Trata-se de uma disputa profunda sobre valores, culturas políticas e modelos de futuro. À medida que o mundo multipolar se afirma, a pergunta deixa de ser apenas "quem é democrático?" e passa a incluir "quem decide o que é democracia?". A resposta, como sempre, dependerá do ponto de vista — e, sobretudo, dos resultados.