CHINA EM FOCO

Qual a diferença entre a democracia na China e no Ocidente?

A potência asiática se descreve como uma democracia, mas é taxada de 'ditadura' por países ocidentais; poucos se dedicam a compreender o sistema político chinês

Créditos: Xinhua - No condado de Jinping, na prefeitura autônoma de Qiandongnan, província de Guizhou, membros do comitê da Conferência Consultiva Política do Povo do condado participam de uma discussão sobre a "gestão de áreas livres".
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No Ocidente, muitos expressam ceticismo quando a China se descreve como uma democracia — mais especificamente, uma "Democracia Popular de Processo Integral". Os países ocidentais classificam o sistema político chinês, de maneira simplista, como uma "ditadura".

Poucos ocidentais se dedicam a compreender o que essa concepção de democracia realmente significa para o país asiático, como ela difere das democracias liberais e por que o governo chinês a considera adequada ao seu contexto.

Um bom caminho para tentar compreender o que é a democracia da China, é um artigo publicado no Qiushi, o jornal teórico oficial do Comitê Central do Partido Comunista da China (PCCh), assinado por Lin Shangli, presidente da Universidade Renmin, que detalha a visão chinesa sobre o conceito de democracia.

A Universidade Renmin, uma das mais renomadas da China, é amplamente reconhecida por suas contribuições em áreas como direito, economia, sociologia e administração pública, e desempenha um papel importante no fornecimento de líderes para o governo e economia do país.

Intitulado "Desenvolvendo a Democracia Popular de Processo Integral para Avançar a Modernização Chinesa", o artigo de Lin Shangli esclarece que, ao contrário dos partidos políticos no Ocidente, como Democratas e Republicanos nos EUA ou partidos como PT e PL no Brasil, o Partido Comunista da China não é visto apenas como um partido político que compete por poder. Ele se apresenta como a própria estrutura do Estado, sendo o guardião do mandato popular.

Diferente das democracias liberais, que centralizam sua atuação em eleições periódicas, a "Democracia Popular de Processo Integral" proposta pela China é orientada para a participação contínua da população em todos os níveis da governança.

O artigo destaca que essa democracia não se limita ao processo eleitoral, mas inclui uma interação constante entre governo e população, por meio de consultas e supervisão.

Na prática, isso se reflete em instituições como a Conferência Consultiva Política do Povo Chinês (CCPPC) e comitês locais, onde representantes da sociedade participam diretamente do processo de formulação de políticas e decisões cotidianas. Segundo a visão chinesa, essa abordagem resulta em uma governança mais eficaz e alinhada com as necessidades reais do povo.

O artigo também enfatiza que, na China, a legitimidade democrática está focada nos resultados — ou seja, na capacidade do governo de promover o desenvolvimento sustentável e o bem-estar da população.

Para o PCCh, o sucesso de sua democracia é medido pela estabilidade econômica e a prosperidade do povo, em oposição ao foco nas eleições como única forma de garantir a legitimidade, como ocorre nas democracias ocidentais.

Assim, o modelo chinês é apresentado como uma alternativa que não apenas desafia as noções ocidentais de democracia, mas que também se encaixa melhor no contexto social e histórico da China.

Democracia além das eleições

A "Democracia Popular de Processo Integral" proposta pela China vai além do modelo tradicional ocidental de democracia, em que a participação política é amplamente limitada a eleições periódicas.

Segundo o conceito do PCCh, a participação do povo na governança deve ser contínua e envolver consultas regulares, supervisão popular e diferentes formas de engajamento cívico ao longo do tempo.

Esse modelo é visto pelo governo chinês como uma inovação que combina princípios marxistas com as necessidades específicas do desenvolvimento socialista do país.

A ideia é garantir uma participação mais direta e constante da população na tomada de decisões, sem depender das tradicionais disputas eleitorais típicas das democracias liberais.

A proposta chinesa desafia os modelos ocidentais ao destacar que a democracia não deve se limitar a períodos eleitorais, mas sim ser uma prática constante de engajamento cívico e governança participativa.

Essa integração entre o partido, o povo e a lei posiciona o PCCh não como uma entidade que compete dentro do sistema, mas como a estrutura que garante a coerência e a funcionalidade do sistema político.

O Partido é descrito como a instituição capaz de "medir com precisão o pulso público na governança e refletir a vontade popular", um papel que, nas democracias liberais, seria atribuído a todo o aparato de governança democrática, e não a um único partido político.

Democracia do povo

O modelo político chinês é descrito não como um "estado de partido único", mas como um "estado sem partido", no qual o PCCh atua como a encarnação do Estado e desempenha o papel de guardião permanente do mandato popular, o que reflete o conceito de "democracia do povo" como algo intrínseco ao próprio funcionamento do país.

A ideia central da "democracia de processo integral" na China vai além das eleições periódicas típicas das democracias liberais. Ao contrário do modelo ocidental, que é visto como limitado e intermitente, a China propõe uma democracia que envolve o engajamento constante entre o governo e a população.

Para o PCCh, a democracia é vista como um elemento contínuo da governança, com políticas sendo ajustadas em tempo real para atender às necessidades do povo, e não apenas em períodos eleitorais.

Esse conceito se materializa em diversas instituições, como a CCPPC, onde representantes de diferentes setores da sociedade colaboram na formulação de políticas. Em nível local, comitês de moradores e vilas permitem que os cidadãos participem diretamente de decisões que impactam suas vidas diárias, como projetos de desenvolvimento e serviços comunitários.

O sistema também incentiva uma supervisão pública ativa, oferecendo canais para que a população denuncie má conduta de funcionários públicos ou apresente sugestões.

Com uma ampla rede de 100 milhões de membros do PCCh espalhados pelo país, a estrutura partidária facilita o contato direto com a população, permitindo um constante fluxo de feedback e compreensão das demandas do povo.

Esse modelo busca uma democracia participativa e contínua, em que a vontade popular seja incorporada em todas as etapas da governança.

Espetáculo vs resultados

Na "Democracia de Processo Integral" chinesa, o foco se afasta das campanhas eleitorais e promessas superficiais de partidos concorrentes. Em vez disso, o modelo valoriza o diálogo contínuo, a consulta e a colaboração entre governo e cidadãos para solucionar problemas de forma prática.

A democracia na China, diferentemente das liberais ocidentais, prioriza os resultados da governança em vez de confiar apenas nos processos eleitorais para validar sua legitimidade. O objetivo central é garantir um desenvolvimento nacional sustentável, estável e sólido.

O conceito de "democracia popular" vem da tradição comunista, contrastando com a "democracia burguesa", que em sistemas capitalistas é vista como promotora de direitos políticos superficiais, enquanto mantém a desigualdade econômica e a dominação da elite capitalista.

Mesmo com a evolução desse conceito ao longo do tempo, a "democracia popular" na China mantém a premissa de que o bem-estar das massas deve prevalecer sobre os interesses de grupos elitistas.

Como destacado no artigo da Qiushi, as políticas do país precisam "refletir as preocupações do povo, incorporar suas aspirações, promover seu bem-estar e atender ao desejo de uma vida melhor". Essa abordagem visa resultados concretos que atendam às necessidades da população, em oposição a um foco exclusivo nas formalidades eleitorais.

Povo, a Força Motriz da História

A noção de "democracia popular" na China está profundamente enraizada na tradição cultural do país, que valoriza a harmonia social e o bem-estar coletivo acima do individualismo.

Diferente da visão ocidental, como a célebre frase de Margaret Thatcher "não existe essa coisa de sociedade" —, a perspectiva chinesa vê a sociedade como uma entidade orgânica, cujos interesses coletivos são mais importantes do que as necessidades individuais. O conceito de coesão social é, portanto, central no modelo democrático chinês.

No modelo de "democracia popular", o povo não apenas participa como eleitor, mas é considerado a verdadeira força motriz do desenvolvimento nacional. O artigo sublinha que "o povo é a verdadeira força motriz da história", destacando que a modernização da China precisa se basear no envolvimento e na criatividade do povo, além de aproveitar sua força coletiva.

Esse modelo contrasta com o de democracias liberais, onde o papel político dos cidadãos frequentemente se resume à escolha entre partidos durante as eleições. Na China, o PCCh atua como o principal canal para mobilizar a energia popular, transformando-a em poder coletivo para o desenvolvimento do país.

Diante da questão de se esse sistema pode ser considerado democrático se o povo não escolhe seus governantes diretamente, a visão chinesa afirma que é mais democrático selecionar governantes com base em critérios meritocráticos e no desempenho real ao invés de depender de campanhas eleitorais ou de apelos a grupos de interesse.

Essa abordagem reflete o caráter pragmático da governança chinesa, que busca garantir que os líderes atendam às necessidades da população de forma contínua e eficaz, ao invés de se concentrar nas formalidades do processo eleitoral.

Legitimidade testada pela entrega para o povo

O sistema político da China incorpora mecanismos de responsabilização constantes, que não dependem apenas das eleições. "Os principais órgãos do Partido e do Estado, assim como seus funcionários, devem exercer seus poderes estritamente conforme os mandatos e procedimentos legais, servindo ao povo de maneira plena", afirma o texto.

Esse rigor é evidenciado pelo grande número de autoridades disciplinadas ou presas anualmente, inclusive figuras de alta hierarquia. Nenhum outro país no mundo submete seus oficiais a esse nível de escrutínio e responsabilidade.

Além disso, o sistema chinês conta com supervisão pública direta com incentivo aos cidadãos para denunciar corrupção ou má conduta de autoridades. Diversos canais estão disponíveis para que a população participe da governança e influencie políticas, além do simples ato de escolher líderes em eleições.

Diferente da concepção ocidental, na qual os oficiais são vistos principalmente como tomadores de decisão eleitos, na China, esses são considerados executores das necessidades e vontades do povo. A legitimidade não decorre do voto, mas da eficácia em implementar políticas que realmente atendam aos interesses da população.

A legitimidade política na China é conquistada continuamente por meio de resultados práticos, ao invés de depender de eleições periódicas.

Compreensão da democracia chinesa

Esse modelo chinês de democracia contrasta fortemente com o ocidental, onde se valoriza o processo eleitoral. No entanto, o conceito de "Teste de Turing Ideológico", inspirado no "Teste de Turing" da ciência da computação, sugere que, para criticar uma ideologia de forma justa, é necessário compreendê-la profundamente, a ponto de explicá-la com a mesma precisão de alguém que a defende.

Ao invés de ridicularizar ou temer o sistema chinês, o Ocidente poderia tentar compreendê-lo. A democracia popular chinesa reflete uma visão de mundo muito diferente e desafia muitas das suposições ocidentais sobre representação e legitimidade política.

Isso representa uma verdadeira diversidade — não apenas superficial — no conceito fundamental de como uma sociedade pode ser estruturada. Compreender esse modelo oferece um espelho necessário para refletir sobre os próprios desafios democráticos do Ocidente.

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