O Ocidente - expressão para designar os países ricos do Norte Global - adota a própria régua para avaliar outras sociedades que optam por caminhos diferentes para o próprio desenvolvimento. Mas a uniformidade de pensamento que dominou as políticas e a diplomacia ocidentais por décadas, agora enfrenta um escrutínio sem precedentes, tanto de dentro quanto de fora.
A nova ordem mundial, forjada em meio a crescentes desafios globais e mudanças geopolíticas, acena que a era da monotonia ideológica do Ocidente está chegando ao fim.
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É o que conclui a análise feita pelo chinês Robert Wu, CEO da BigOne Lab, empresa líder de dados alternativos da China. Ele comenta essa transformação em curso em um texto publicado no boletim informativo China Translated, que oferece análise prática dos eventos com impacto de longo prazo.
Wu tece suas reflexões a partir de um exemplo de como a mídia ocidental encara os próprios dilemas. Ele cita uma postagem de Ian Bremmer, que escreve para o Eurasia Group, sobre o decadente debate presidencial entre Donald Trump e Joe Biden realizado em junho e que mostrou um deprimente concurso de medição de forças entre o republicano e o democrata.
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O executivo chinês pondera que, ao invés de promover uma reflexão sobre de que forma a autointitulada "maior democracia do mundo" chegou a tal ponto, Bremmer opta por fazer piada sobre o sistema político da China.
"É um senso de complacência profundo na mente das elites ocidentais. Por exemplo, justamente quando Donald Trump e Joe Biden terminaram seu deprimente concurso de medição de forças que foi o debate presidencial, Ian Bremmer do Eurasia Group, em vez de refletir sobre como o Ocidente chegou a este ponto, postou isto", escreveu Wu.
Não existe pílula mágica
No artigo escrito em primeira pessoa, Wu relata sua jornada de interesse pelo Ocidente e posterior decepção. Ele esclarece que o texto não é exatamente sobre o Ocidente. "É sobre como uma criança na China se encantou inicialmente pelo Ocidente, apenas para se decepcionar mais tarde. É uma história sobre mim mesmo", esclarece.
Wu compartilha o seu processo de formação política, iniciado aos 14 anos de idade, que promoveu a mudança em sua percepção de um jovem sobre o mundo após descobrir os eventos da Praça Tiananmen, que aconteceram em 1989.
Surpreso e sobrecarregado, ele se lançou em uma jornada de autodescoberta e aprendizado intensivo, começando pelo aprimoramento do inglês para acessar informações globais. Desenvolveu uma paixão por revistas internacionais como a Newsweek e a National Geographic.
Ao mesmo tempo, relata no texto, o entendimento dele sobre o mundo começou a florescer em mais direções. "Li filosofia, história mundial, história chinesa, economia, ciências, ciências sociais, história da ciência...", relembra.
"Este mundo não é para os fracos de coração. Decisões difíceis são tomadas o tempo todo. Não haveria uma solução mágica para os problemas do mundo. E, uma vez que houve uma tentativa de solução mágica, desastres geralmente seguem", reflete.
Ele cita eventos tanto da China quanto do Ocidente para refutar a ideia de que existe uma panaceia para os desafios da humanidade.
"Sim, o Grande Salto Adiante e a Revolução Cultural foram essas pílulas mágicas letais. Mas também foi a Guerra do Iraque. Nunca consegui entender completamente a Guerra do Iraque. Olhando para trás, vejo uma combinação de paranoia, presunção moral e pura ignorância que levou os estadunidenses a uma guerra que supostamente seria uma pílula mágica que traria liberdade e prosperidade para a antiga terra da Mesopotâmia. Em vez disso, o que se obteve foi apenas dor e sofrimento para as pessoas envolvidas e a perda de um milhão de vidas", questiona.
Essas experiências formaram a base de uma visão de mundo mais ampla e informada, desafiando a narrativa restrita a que estava inicialmente exposto, tanto na China quanto no Ocidente.
EUA são uma ilha
Wu recorre a uma palestra proferida por Kishore Mahbubani, ex-diplomata singapuriano, na Universidade em Harvard, para ilustrar de que maneira as histórias são contadas no Ocidente, mais especificamente pela mídia dos Estados Unidos.
"Uma coisa que realmente me surpreendeu, por um lado, os Estados Unidos têm a mídia mais livre do mundo, os melhores jornais financeiros, as melhores estações de televisão financeira do mundo. Mas posso dizer isso, como alguém que viaja para 30 ou 40 países por ano, quando chego aos Estados Unidos, e quando vou para o meu quarto de hotel no Charles Hotel e ligo a televisão, sinto que fui cortado do resto do mundo. Literalmente. A insularidade do discurso estadunidense é realmente assustadora. Isso também é verdade para o New York Times. Isso também é verdade para o Washington Post. Isso é verdade para o Wall Street Journal. Há esse discurso incestuoso, autorreferencial entre esses jornalistas de jornais, e eles reforçam as perspectivas uns dos outros e acabam por não entender o mundo."
Velhas lentes para enxergar o novo mundo
Atualmente, compartilha Wu, sempre que volta a ler a mesma mídia ocidental dominante que o levou a uma jornada de conhecimento 20 anos atrás, fica chocado ao descobrir que, embora ele mesmo tenha evoluído muito desde então, o que ele constantemente lê parece não ter mudado nada.
"Durante todo esse tempo, a mesma mídia parece só conseguir colocar o mesmo velho conjunto de lentes para explicar o mundo. Há apenas uma doutrina, uma régua e um princípio para decidir o que é bom ou ruim: a Religião da Democracia e da Liberdade", provoca.
Wu observa que, para a mídia ocidental, não importa a importância do desenvolvimento econômico, a paz, o respeito pelas regras e pela civilidade que podem apenas florescer em um ambiente de estabilidade e prosperidade, e através de uma boa educação pública. Todos esses tópicos importantes desaparecem diante da todo-poderosa Religião da Democracia e da Liberdade. "Você toma essa pílula mágica, você está curado. Recuse-a? Você está condenado", constata.
"De repente, percebi que a mesma mídia ocidental que costumava me surpreender 20 anos atrás é, tristemente, também uma forma de doutrinação. É, por falta de uma palavra melhor, propaganda. Não apenas qualquer propaganda, mas uma forma mais perigosa de propaganda na qual as pessoas envolvidas não percebem isso de forma alguma!", alerta.
Seita da ultra-direita
Wu reflete que começou a apreciar a ambiguidade para compreender o mundo e seus dilemas e a preferi-la em vez de uma resposta clara. Porque, na visão dele, uma resposta clara não é apenas tediosa. "Também é perigosa, pois cria e amplifica divisões imaginárias entre pessoas que mantêm uma visão contra as que mantêm outra", explica.
"Onde quer que haja pessoas, haverá diferenças. É isso que torna o mundo belo e diversificado em primeiro lugar. Mas se um grupo de pessoas se apegar demais à sua própria perspectiva, uma cruzada religiosa se segue", analisa.
Na perspectiva de Wu, essa "cruzada religiosa" em defesa de uma ideologia é a força motriz por trás do surgimento do trumpismo e da ultra-direita. Ele comenta que as elites ocidentais têm vivido por anos dentro de suas próprias bolhas ideológicas autocongratulatórias, cegando sua visão, enganando-se com a ideia de que a história acabou.
O "fim da história" é uma visão de mundo sustentada por Francis Fukuyama, um cientista político estadunidense, em ensaio de 1989, "The End of History?" publicado na revista The National Interest. Posteriormente, Fukuyama expandiu suas ideias no livro "The End of History and the Last Man", publicado em 1992.
A tese de Fukuyama argumenta que, com o fim da Guerra Fria e o declínio global do comunismo, a humanidade estava chegando ao "fim da história". Este conceito não se refere ao fim dos eventos históricos per se, mas à culminação da evolução ideológica da humanidade em uma forma final de governo. Segundo Fukuyama, a democracia liberal representava o ponto final desse desenvolvimento ideológico, sendo o sistema de governo ao qual todos os estados eventualmente convergiriam.
Apesar de ser amplamente discutida e muitas vezes criticada, especialmente após eventos globais subsequentes que desafiaram sua visão, como o surgimento do terrorismo global, crises financeiras, a ascensão da China comunista como potência global e o ressurgimento de tensões nacionalistas e autoritárias, a teoria de Fukuyama segue sendo referência nos debates sobre política global e desenvolvimento ideológico.
Wu prossegue em sua análise sobre a ascensão da extrema direita nos EUA e ressalta que, por muito tempo, a elite estadunidense negligenciou a situação dos desprivilegiados, os caipiras, os "rednecks" (pescoços vermelhos, em tradução livre; expressão que designa a classe de trabalhadores rurais brancos), a pobreza da "Cinturão do Ferrugem" (região no nordeste dos Estados Unidos que, durante o século XX, foi um dos maiores e mais produtivos centros de manufatura pesada do país, incluindo indústrias de aço, automóveis e manufatura. Abrange partes dos estados de Illinois, Indiana, Michigan, Ohio, Pensilvânia e Nova York e vivencia um declínio econômico desde as décadas de 1970 e 1980 com a ascensão do neoliberalismo).
"Para reagir a essa raiva, as elites parecem incapazes de entregar políticas concretas para reajustar o equilíbrio. Em vez disso, elas só parecem ser capazes de aumentar a retórica moralizadora, culpando e rotulando seus oponentes como pessoas más. Elas se apegam à sua monotonia ideológica, o que só faz o campo oposto endurecer ainda mais. Os dois campos estão para sempre presos em um jogo de "certo vs errado", de "bom vs mal", cada lado acreditando apenas que sua própria ideologia está certa. Esse tipo de divisão é muito difícil de ser superada, a menos que uma mudança fundamental nas crenças centrais ocorra", observa.
Há mais de um tipo de democracia
Wu pontua que quando a monotonia ideológica chega aos assuntos globais, ela também constantemente enquadra o mundo em um binário de "bom vs mal" e não pensa duas vezes antes de travar guerras intermináveis para defender seu lado dos valores.
"Isso não apenas semeou mais desequilíbrios na estrutura global, mas também um mal-entendido fundamental do mundo. Talvez, eles falhem em reconhecer que nem todas as grandes potências querem recorrer à guerra para alcançar seus objetivos? Meu maior medo sobre as relações EUA-China é ver fanáticos e extremistas assumindo as rédeas da formulação de políticas, que querem nada além de derrotar o outro lado, arriscando uma conflagração global", admite.
O autor esclarece que não tece críticas à ideia de democracia, mas que se opõe à noção de que existe apenas um tipo de modelo, o liberal, adotado por países como os EUA, da Europa e o Brasil.
"Eu amo a democracia. A democracia é boa. A liberdade é valiosa. Estou simplesmente me opondo à ideia de que um conjunto de ideias deve ter precedência absoluta sobre os outros", reconhece.
Ele esclarece ainda que a China não tem ressentimentos contra a democracia e, ao contrário do senso comum alastrado pelo Ocidente, palavras como “democracia” não são censuradas na China. Destaca que “democracia” está no cerne do programa de modernização da China. Está escrita na constituição do país e do Partido Comunista da China (PCCh) e é mencionada em todos os principais documentos de política, como o recente comunicado do crucial 3º Plenário.
"Nenhum oficial chinês hoje em seu juízo perfeito diria que a democracia em si é uma coisa ruim, e se o fizessem, perderiam facilmente o poder. (Eles têm objeções à democracia ao estilo ocidental.) Nós, os chineses modernos, compartilhamos a mesma crença fundamental de que o governo deve ser do Povo, pelo Povo e para o Povo. Apenas discordamos do Ocidente sobre como fazer isso funcionar", afirma.
Nesse contexto, pode ser mais fácil para entender por que, no ano passado, quando Biden chamou Xi de "ditador", em vez de ficar em silêncio sobre isso, o aparato do PCCh e do Estado entrou em ação para combater essa narrativa. Isso porque o poder político chinês é essencialmente construído sobre um conjunto de valores que também incluem a democracia, não deixando espaço para a existência de um verdadeiro “ditador” caricatural.
Outro fato importante trazido por Wu que ajuda a entender sobre o próprio país dele é que para muitas pessoas que têm apenas um conjunto de lentes para olhar o mundo, uma coisa que ainda não entendem é que a China não é contra a democracia. O que a China busca é encontrar e gerenciar o equilíbrio certo entre muitos bons sistemas de valores ao mesmo tempo.
Durante o 18º Congresso do PCCh, em 2012, quando Xi Jinping ascendeu ao cargo de secretário-geral, o Partido consagrou os 12 "Valores Socialistas Centrais", que são: Prosperidade, Democracia, Civilidade, Harmonia, Liberdade, Igualdade, Justiça, Estado de Direito, Patriotismo, Dedicação ao Trabalho, Integridade e Amizade.
"Você vê, tanto a democracia quanto a liberdade estão listadas como parte dos 12 valores centrais da República Popular da China. Elas não são menosprezadas. Elas não são ignoradas. É apenas que elas estão em pé de igualdade com outros 10 valores centrais e não têm posição dominante sobre os outros", observa.
Democracia de todo o processo da China
A China enfrenta o desafio de equilibrar esses 12 "Valores Socialistas Centrais", uma tarefa que, apesar de críticas, busca evitar a dominância de um único princípio sobre os outros. Conflitos entre esses valores são inevitáveis, mas refletem a complexa realidade de priorizar diferentes aspectos em momentos distintos, dependendo das circunstâncias vigentes.
No coração dos esforços de modernização do país, surge o conceito de "democracia de todo o processo", uma ideia que tem sido alvo de escárnio por parte do Ocidente, que a vê como uma fachada para um regime autoritário. No entanto, essa noção é defendida como um esforço legítimo para integrar a democracia a outros valores essenciais, reconhecendo que não existem soluções simples para desafios complexos.
A abordagem da China, que também envolve a aceitação de que não há "caminhos claros" ou "pílulas mágicas" para a governança, destaca a busca por uma metodologia realista que contempla a sensibilidade e adaptação contínua às condições mutáveis, uma estratégia que pode oferecer insights valiosos para a compreensão do desenvolvimento político e social contemporâneo.
Mundo multipolar
Em meio a crescentes desafios globais e mudanças geopolíticas, a era da monotonia ideológica do Ocidente parece que está chegando ao fim. A uniformidade de pensamento que dominou as políticas e a diplomacia ocidentais por décadas agora enfrenta questionamentos constantes. Esta transformação não apenas reflete um mundo multipolar emergente, mas também a necessidade de abordagens mais matizadas e diversificadas para resolver problemas complexos globais.
Por muito tempo, a narrativa ocidental baseada na promoção da democracia e da liberdade como soluções universais para todos os problemas políticos e sociais foi recebida com ceticismo por várias nações ao redor do mundo. Essa abordagem, muitas vezes vista como uma exportação de valores ocidentais, ignorava as nuances culturais e históricas que moldam diferentes sociedades. O resultado foi uma série de intervenções mal sucedidas e uma percepção crescente de hipocrisia, particularmente em relação às políticas internas e externas do Ocidente.
No entanto, mudanças significativas estão ocorrendo. As vozes dentro das democracias ocidentais estão cada vez mais chamando atenção para as falhas e limitações de sua própria governança. O surgimento de movimentos sociais que desafiam o status quo e exigem uma reforma significativa é um testemunho da crescente demanda por uma representação mais autêntica e inclusiva. Além disso, o reconhecimento das falhas nas políticas externas, exemplificado pela reação crítica às guerras no Oriente Médio e a gestão de crises internacionais, sinaliza uma reflexão introspectiva que há muito é necessária.
Internacionalmente, a ascensão de potências globais como China e Índia desafia a ordem liderada pelo Ocidente, propondo novos modelos de desenvolvimento e cooperação internacional que não se baseiam exclusivamente nos valores ocidentais. Essas nações estão promovendo uma visão de mundo que valoriza a soberania nacional e a colaboração pragmática sobre a imposição ideológica.
Esse cenário está abrindo caminho para um diálogo mais rico e diversificado sobre como abordar questões globais como mudanças climáticas, desigualdade econômica e segurança internacional. O fim da monotonia ideológica do Ocidente oferece uma oportunidade para explorar novas formas de cooperação internacional que respeitem e celebrem a diversidade de perspectivas e experiências.
À medida que avançamos, a chave para um engajamento global eficaz será a capacidade do Ocidente de ouvir e integrar diferentes pontos de vista, reconhecendo que não há uma única solução para todos os problemas do mundo. O reconhecimento das complexidades e das múltiplas realidades enfrentadas por diferentes países será crucial para construir um futuro mais equitativo e sustentável.
O fim da monotonia ideológica do Ocidente não é um sinal de declínio, mas um despertar para uma nova era de cooperação global, onde múltiplas vozes e valores têm um papel crucial na formação de nosso mundo compartilhado. Essa transição representa uma evolução necessária das relações internacionais, refletindo um mundo que está, de fato, se tornando verdadeiramente globalizado em sua abordagem para resolver os desafios mais prementes da humanidade.
Confira aqui o texto, em inglês, de Robert Wu