Desde que iniciei meu mergulho para tentar compreender a China, um dos meus maiores desafios tem sido expor ao público brasileiro como funciona o tal do comunismo chinês.
Em primeiro lugar, o marxismo chinês não tem nenhuma semelhança com o marxismo brasileiro ou latino. No nosso continente, o comunismo é uma ideia, um conceito. Aqui na China é uma forma objetiva de fazer política.
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Por exemplo, com a ascensão da extrema direita no Brasil, o debate público brasileiro sobre comunismo descambou para avaliações subjetivas e morais calcadas em ideias difusas como "liberdade" e "democracia", o "bem contra o mal", regime democrático versus ditadura.
A prática chinesa do comunismo está relacionada ao desenvolvimento das forças produtivas do país. Os chineses, até onde pude observar, não têm interesse algum em pautas morais e que não têm uma razão objetiva e voltada para o bem-estar da população.
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Por aqui nunca vi nenhuma autoridade ocupar espaços do debate público para tratar de sexualidade, orientação sexual ou identidade de gênero de indivíduos, se o banheiro é unissex, se a Bíblia é mais importante do que a Constituição, se existe ou não um "povo escolhido", se a Terra é plana ou se é adequado ou não usar linguagem neutra.
Aqui na China as concepções do comunismo, ou para ser mais exata, marxianas, elaboradas por Karl Marx e Friederich Engels e interpretadas por marxistas como Vladimir Lênin, Mao Zedong, Deng Xiaoping e Xi Jinping sobre o sistema capitalista são uma ciência aplicada e não uma ideologia.
O marxismo aqui foi moldado à realidade da China, cuja civilização de cinco mil anos vestiu o materialismo histórico e dialético como mais uma camada de olhar sobre o mundo que se juntou a sistemas de pensamento como o Confucionismo e o Taoísmo.
Na sociedade chinesa, o Confucionismo e o Taoísmo são aplicados de forma complementar, para refletir ética, moral, práticas culturais e religiosas.
O Confucionismo tem como foco a ordem social, rituais, e a importância da família e da educação e influencia os comportamentos sociais e a governança.
O Taoísmo enfatiza a harmonia com a natureza, a simplicidade, e a espiritualidade, influencia as práticas de saúde, meditação, e a apreciação da arte e da natureza.
Juntos, esses sistemas oferecem um equilíbrio entre as responsabilidades sociais e a busca pessoal pela harmonia e sabedoria.
Já o marxismo se funde a esses dois sistemas de pensamento e funciona como uma bula, um modo de fazer política e, o mais importante, uma bússola de como alcançar as metas estabelecidas para alcançar a prosperidade comum.
Daí que, na minha interpretação, a dialética já faz parte do modo de ser do chinês. Então, discussões morais como as que dominam o debate público brasileiro são consideradas uma inutilidade sem sentido para os chineses.
O povo chinês quer entregas do governo: melhorias na saúde, na moradia, no transporte, na saúde, na educação e no emprego. Objetivos que, de fato, melhoram a vida das pessoas. O que cada um faz com sua fé, sua sexualidade e na vida privada não é de interesse público.
Outro aspecto importante que eu observo no sistema político chinês é o estabelecimento de metas e prazos claros pelo governo central que são aplicados nas instâncias subnacionais até chegar no cidadão comum.
Cada lugar vai achar o caminho próprio para cumprir a tarefa coletiva. Então, a democracia aqui não tem relação com a escolha de representantes a cada quatro como ocorre no Brasil. A democracia chinesa é a participação na execução das tarefas que vão melhorar a vida do povo.
Lá na pequena vila, os moradores escolhem de forma direta, por meio do voto, a sua liderança local, que vai representá-los na instância superior, escolhendo, de forma indireta, outros representantes até chegar ao governo central.
É como se os brasileiros votassem de forma direta em um vizinho para representá-los na escolha, indireta, de outros representantes e para transmitir as necessidades da sua comunidade na cidade e na unidade da Federação até chegar a Brasília.
Como o marxismo chinês é aplicado na prática? Vou dar um exemplo. Em 2015, o governo central chinês, já sob a presidência de Xi Jinping, lançou um plano chamado 'Made in China 2025'.
Essa estratégia foi lançada com o objetivo de transformar a China em uma superpotência de manufatura de alta qualidade e alta tecnologia.
O plano foi estruturado em três etapas principais:
- focar na industrialização básica e progresso em fabricação inteligente e verde de 2015 a 2025;
- alcançar uma industrialização completa e liderança em fabricação de segundo nível com forte pesquisa e desenvolvimento e avanços em setores-chave de 2025 a 2035;
- atingir liderança em fabricação de primeiro nível com tecnologia avançada e sistema industrial de 2035 a 2050.
Esse documento foi divulgado pelo Conselho de Estado, que é o principal órgão do Executivo da China, junto aos governos populares de todas as províncias, regiões autônomas e municípios diretamente sob o governo central, todos os ministérios e comissões do Conselho de Estado, todas as agências diretamente subordinadas para que fosse debatido e colocado em prática.
Quatro anos depois, o Made in China 2025 foi incorporado ao 14º Plano Quinquenal (2021-2025). A China colocou ênfase especial na necessidade de garantir a autossuficiência tecnológica e fortalecer a orientação para a economia doméstica, estabelecendo, por exemplo, taxas de suficiência de mercado de 70% para equipamentos de fabricação inteligente e 50% para software industrial até 2025.
Essas tarefas foram mais uma vez reforçadas no relatório apresentado pelo presidente Xi Jinping durante o 20º Congresso Nacional do PCCh, em outubro de 2022.
Agora, em março de 2024, a tarefa designada como desenvolvimento de "novas forças produtivas de qualidade" também está no relatório do governo apresentado à Assembleia Popular Nacional, o legislativo nacional chinês.
Cada um desses documentos atualiza o que foi feito, o que precisa ser implementado ou corrigido. Os quase três mil deputados e deputadas se concentram nesse projeto nacional de desenvolvimento.
Esse é só um dos aspectos da prática marxista chinesa, a ciência aplicada à política. Há outros temas relevantes, como o acompanhamento da eliminação da extrema pobreza, a criação de empregos e a preservação do meio ambiente.
Na democracia chinesa, não tem espaço para debater pautas morais. As tarefas dos políticos está em melhorar a vida do povo.
Talvez ao invés de debater o sexo dos anjos seria mais produtivo pensar em como gerar empregos, distribuir nossas riquezas e melhorar a qualidade de vida do nosso povo. Sendo a Terra plana ou não.
Beijinhos de Beijing!