Magna Carta: documento mais importante da história do direito é encontrado em Harvard
Um fragmento de documento da Magna Carta em posse da Universidade de Harvard é "um original extremamente raro", datado de 1300; saiba o que foi o documento mais importante da história do direito
A Harvard School of Law (Escola de Direito de Harvard) anunciou, nesta quarta-feira (15), que um fragmento de documento da Magna Carta em posse da universidade é, na verdade, "um original extremamente raro", datado de 1300.
A descoberta do documento foi feita por pesquisadores do King's College London, na Universidade de East Anglia (UEA). Ele havia sido adquirido por Harvard na década de 1940, e é "apenas uma das sete edições da Magna Carta do Rei Eduardo I que ainda sobrevivem."
A Magna Carta
O primeiro fundamento das regras de governo e do direito dos reis, o documento da Magna Carta (ou Carta Magna) é estruturado de uma maneira que, à primeira vista, pode parecer primitivo: como diz o pesquisador Jesús Fernández-Villaverde no periódico International Review of Law and Economics, "a linguagem não é familiar", e os capítulos, que inicialmente nem eram numerados (uma adição posterior para facilitar a leitura), "se agregam sem um padrão, mais um produto da pressa com que a folha de pergaminho de 3.350 palavras foi redigida do que uma reflexão" sobre as leis e o "Estado" (que, nesta época, não havia se formado juridicamente).
O documento é mais um "lugar de memória" (lieu de mémoire) que uma "estrutura cognitiva a sustentar as crenças coletivas dos povos de língua inglesa sobre a vida, a liberdade e a propriedade".
Mas a importância histórica da Carta Magna é inegável: ela estabelece os primeiros limites definitivos ao poder soberano dos reis e seus excessos, e é considerada um marco do Direito Constitucional (ramo do direito público que se volta à organização dos poderes, à delimitação do poder estatal e às constituições).
Em 1215, a Carta Magna foi redigida e assinada "às pressas", como nota Villaverde, pelo rei inglês João "Sem Terra" e um conjunto de senhores feudais, nobres e barões cujo apoio era necessário para a continuidade de seu governo e de sua influência.
Os monarcas ingleses reinavam com o apoio dessas classes, e o que faziam não tinha respaldo legal, mas era definido por seus Grandes Conselhos, que reuniam figuras importantes da corte para deliberar.
Não havia, no entanto, "antídoto" para os excessos dos monarcas, que frequentemente lançavam-se em empreendimentos fracassados, ou instituíam medidas abusivas (como o aumento indevido da tributação).
Nesse ponto, a Coroa precisava ainda mais do apoio de seus aliados nobres: era, afinal, aos senhores de feudos que a tributação era paga, e deles vinha a arrecadação centralizada do soberano.
A Carta de João teve uma precursora: em 1100, quando Henrique I subiu ao poder da Inglaterra (em que permaneceu até sua morte, em 1135), demonstrou suas concessões à nobreza por meio de uma carta chamada "Carta das Liberdades", que definia, entre outras coisas, a promessa de a monarquia não "abusar de seu poder" contra as propriedades dos nobres senhores de terras, uma limitação escrita ao seu próprio poder (que, é claro, não foi cumprida como se propunha).

Créditos: Harvard School of Law, divulgação.
Quando João subiu ao poder, em 1199, iniciou seu reinado com sucessivas derrotas: entre 1202 e 1204, sofreu investidas do Rei Filipe II, da França, e perdeu muitas de suas posses (o que lhe rendeu o apelido de "João Sem Terra").
As batalhas lutadas pelo monarca inglês para recuperá-las, que culminaram com a Guerra Anglo-Francesa e seu fim na Batalha de Bouvines, em 1214, terminaram com Filipe II vencedor (após derrotar um exército de soldados germânicos, flamengos e ingleses liderados pelo imperador Otão IV, na campanha planejada por seu aliado e reclamante, o Rei João).
Diante da derrota no empreendimento, os nobres de seu governo exigiram a assinatura daquela que ficaria conhecida como a Carta Magna (Magna Carta), em 15 de junho de 1215. O documento, que estabelecia limitações ao poder real em relação às propriedades de seus súditos e à proteção da igreja contra prisões, além de seu "acesso rápido à justiça" e de limitações à tributação da Coroa, foi chamado também de "Artigo dos Barões", e instrumentos foram criados para garantir seu cumprimento pelo rei.

Pintura de Arthur C. Michael (1945).
Créditos: Wikimedia Commons.
Capítulo 174 da Magna Carta:
(17) Os processos judiciais ordinários não seguirão a corte real, mas serão realizados em local fixo.
[...]
(30) Nenhum xerife, oficial real ou outra pessoa poderá levar cavalos ou carroças para transporte de qualquer homem livre, sem o seu consentimento.
(31) Nem nós nem qualquer oficial real levaremos madeira para o nosso castelo, ou para qualquer outro propósito, sem o consentimento do proprietário.
(32) Não manteremos as terras de pessoas condenadas por crimes graves em nossas mãos por mais de um ano e um dia, após o qual serão devolvidas aos detentores das "taxas" correspondentes.
Embora João tenha recorrido ao poder do Papa Inocêncio III, que chegou a declarar a Carta nula pouco tempo depois de sua assinatura (em agosto de 1215), sua validade foi defendida por um conflito violento liderado pelos barões, que resultou em ainda mais perdas de João e recebeu o apoio de Filipe II.
O marco inicial da limitação ao direito dos reis estabelecido pela Magna Carta "formou a base das constituições ao redor do mundo", evidencia a Escola de Direito de Harvard, e foi "influente na formação dos Estados Unidos, da Declaração da Independência à formação da Constituição norte-americana e à subsequente adoção da Carta de Direitos (Bill of Rights)."
O documento adquirido por Harvard, que acabou por se provar um fragmento original da Carta Magna, havia sido comprado por apenas US$ 27,50 em 1946, de acordo com o registro bibliotecário da universidade, e estava descrito como uma "cópia" do documento original, feita em 1327.
"É uma descoberta fantástica", diz David Carpenter, professor de História Medieval do King's College London. "A Magna Carta de Harvard merece ser celebrada, não como uma mera cópia manchada e desbotada, mas como o original de um dos documentos mais significativos da história constitucional mundial, uma pedra angular de liberdades passadas, presentes e ainda a serem conquistadas."