Opinião

Trabalhadores e migrantes: Leão XIV e a releitura da justiça social na Era Trump – Por Álvaro Quintão

Um papa americano com alma de imigrante desafia a era Trump, ecoando a luta histórica por trabalho e justiça social.

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Álvaro Quintão é advogado e mestre em Ciências Jurídicas. Foi presidente da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil - Seção Rio de Janeiro (OAB/RJ) e secretário-geral da OAB/RJ. Atualmente, é sócio do escritório Quintão e Lencastre Advogados Associados.
Trabalhadores e migrantes: Leão XIV e a releitura da justiça social na Era Trump – Por Álvaro Quintão
Gabriel Bouys/AFP

A chegada de Robert Prevost ao papado, como Leão XIV, ressoa com ecos de um passado profético, conectando-se sutilmente à figura marcante de Leão XIII. Assim como seu predecessor, que no ocaso do século XIX ousou confrontar as inéditas desigualdades da Revolução Industrial com a encíclica Rerum Novarum, Leão XIV emerge em um tempo de novas fraturas sociais e políticas, onde a dignidade humana clama por defensores.        

Sua eleição, portanto, transcende a mera sucessão apostólica, inscrevendo-se como um ato político de profunda ressonância, um espelho incômodo erguido diante da nação americana, outrora seu lar, e convidando-a a um exame de consciência urgente.

Assim como Leão XIII testemunhou as agruras dos trabalhadores explorados pela nascente indústria, Leão XIV presencia as angústias dos migrantes marginalizados e das minorias oprimidas. Sua trajetória, marcada por uma crítica contundente às políticas de Donald Trump, ecoa o espírito corajoso de seu antecessor, que não hesitou em confrontar as injustiças de sua época.

A defesa intransigente da dignidade humana, que permeia as declarações de Prevost desde as primárias republicanas de 2015, reflete a mesma preocupação fundamental que moveu Leão XIII a erguer sua voz em defesa dos direitos dos trabalhadores.

A veemência com que Leão XIV denunciou a retórica anti-imigrante, a defesa dos jovens protegidos pelo DACA (Deferred Action for Childhood Arrivals - Ação Diferida para Chegadas na Infância), a indignação diante da separação de famílias na fronteira e a solidariedade para com as vítimas do racismo estrutural remetem, guardadas as devidas proporções históricas, ao espírito da Rerum Novarum.

Porém, se Leão XIII clamava por salários justos e condições de trabalho dignas, Leão XIV clama por tratamento humano e respeito pelos direitos daqueles que buscam refúgio e uma vida melhor. Ambos, em seus respectivos contextos, confrontam a desumanização do outro, seja ela motivada pela exploração econômica ou pela xenofobia e pelo preconceito.

É fundamental ressaltar que Leão XIV não é apenas um estadunidense, mas também um imigrante, tendo dedicado anos de seu ministério e adotado a cidadania peruana. Essa experiência pessoal de imigração confere a sua voz uma autoridade e uma empatia ainda maiores ao abordar as questões dos migrantes e refugiados.

Sua escolha de servir em um contexto latino-americano, marcado por desigualdades sociais e lutas por direitos, enriquece sua perspectiva e o conecta de forma profunda com as realidades enfrentadas por milhões de pessoas em todo o mundo que buscam uma vida mais digna e justa.

]A eleição de um papa norte-americano, com este histórico tão claro de defesa dos marginalizados, não é um mero acaso. É um convite ao diálogo, um chamado à reflexão sobre os valores que fundamentam a identidade nacional americana. Prevost, com sua experiência nas periferias peruanas e seu profundo conhecimento do cenário político de Washington, personifica a ponte entre o centro e a margem, entre o poder e a exclusão. Sua voz, imbuída da mesma coragem profética que marcou o pontificado de Leão XIII, desafia a complacência e convida a uma ação transformadora.

O Vaticano, ao elevar um crítico das fronteiras fechadas e da retórica divisiva, reafirma a primazia do direito natural sobre as prerrogativas estatais, ecoando a defesa da justiça social que norteou Leão XIII. A mensagem é clara: a grandeza de uma nação não se mede por sua riqueza ou poderio militar, mas pela sua capacidade de acolher o estrangeiro, de proteger os vulneráveis e de construir um futuro onde a dignidade humana seja o alicerce da justiça e da paz.

A eleição de Leão XIV, portanto, carrega consigo o legado de um pontífice que, em tempos de profundas transformações, ousou confrontar as injustiças, convidando a América a um exame de consciência urgente e a um compromisso renovado com seus ideais mais nobres.

A questão que se impõe, com a força de um eco histórico, é: os Estados Unidos ouvirão o chamado de Leão XIV, assim como parte da sociedade ouviu a voz de Leão XIII em seu tempo?

A nação que se orgulha de seus valores democráticos e de sua liderança global estará disposta a confrontar seus próprios demônios e a construir um futuro mais justo e humano, honrando assim o legado daqueles que, em diferentes épocas, ergueram suas vozes em defesa da dignidade humana? A resposta a essa pergunta não apenas definirá o pontificado de Leão XIV, mas também moldará o futuro da América e sua influência no cenário global.

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.

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