A alma do escritório de advocacia está na gestão - Por Álvaro Quintão
Mais do que talento jurídico, escritórios precisam de estrutura, planejamento e cuidado para que a advocacia floresça com eficiência e humanidade
Advogar, no mais profundo sentido, é um ato de escuta e tradução. Traduz-se o sofrimento em argumentação, a injustiça em tese, o medo em coragem protocolada. O advogado, muitas vezes, é o único amparo entre a angústia e a reparação. Mas para que essa nobre função se cumpra com plenitude é preciso reconhecer um fundamento essencial e muitas vezes negligenciado: a advocacia só se sustenta se o escritório que a abriga estiver bem gerido. A gestão deixou de ser acessório. Tornou-se o eixo que sustenta a prática, o solo onde o talento floresce ou murcha.
Por muito tempo, a ideia de administrar um escritório de advocacia era tratada como burocracia secundária, algo menor diante do prestígio da ciência jurídica. Mas o tempo se encarregou de mostrar que, sem gestão, nem a melhor tese sobrevive. Um escritório mal estruturado perde prazos, desmotiva talentos, sangra financeiramente, afasta clientes. E o pior: sufoca vocações. É preciso falar sobre isso com franqueza.
Recentemente, estive em Lisboa para proferir uma palestra sobre Gestão de Pequenos e Médios Escritório de Advocacia. O evento era voltado para gestão, marketing jurídico, relacionamento com os clientes e prospecção de clientes. Naquele evento foi possível conhecer novas ferramentas de IA, de gestão e novos métodos aplicados aos escritórios no Brasil e na Europa.
No evento ficou mais claro para mim que planejar é o primeiro gesto de cuidado. Um planejamento estratégico bem conduzido não se resume a planilhas frias. Ele projeta o futuro, estabelece metas realistas, analisa os riscos e desenha os caminhos possíveis. Ferramentas como a análise SWOT, que identifica forças, fraquezas, oportunidades e ameaças, ajudam a enxergar o próprio escritório com clareza. E a definição de objetivos e resultados-chave, os chamados OKRs, permite medir avanços com lucidez. Quem não sabe aonde quer chegar, tropeça em qualquer trajeto.
Não há escritório sem pessoas. E não há futuro sem gestão de pessoas. O talento jurídico não nasce pronto, ele se desenvolve no calor da prática, quando encontra espaço para crescer. Uma equipe bem liderada se reconhece nos detalhes: há escuta, há incentivo, há clareza de funções. A cultura organizacional precisa ser cultivada com generosidade e firmeza. Um ambiente tóxico sufoca até o mais promissor dos profissionais. Um ambiente saudável, por outro lado, cria pertencimento e lealdade.
A gestão financeira é outro pilar incontornável. Muitos advogados evitam esse tema como quem foge de uma dor de dente. Mas administrar um escritório exige saber quanto se fatura, quanto se gasta, onde se perde. Precificar serviços de forma adequada, acompanhar o fluxo de caixa, analisar indicadores, tudo isso é mais do que administrar, é sobreviver com dignidade. A advocacia não é uma missão filantrópica. É uma profissão que exige equilíbrio entre ideal e realidade.
A rotina jurídica é intensa. Petições, audiências, reuniões, recursos, pareceres. No meio disso tudo, perder um prazo processual pode ser mais do que um erro: pode ser o fim de uma carreira. Por isso, a gestão de processos e prazos precisa ser rigorosa. Sistemas inteligentes de controle, agendas integradas, alertas automatizados são ferramentas indispensáveis. Não se trata de desconfiar da memória, mas de proteger o ofício.
A tecnologia, aliás, deixou de ser uma escolha. É uma condição. Escritórios que resistem à modernização acabam presos a rotinas ineficientes, sobrecarregam seus membros e comprometem a qualidade da entrega. Softwares de gestão jurídica, plataformas de automação de tarefas, inteligência artificial, sistemas de CRM que melhoram o relacionamento com os clientes: tudo isso está disponível, acessível e precisa ser usado com discernimento e estratégia. A tecnologia não substitui o advogado. Ela o liberta para pensar.
Relacionar-se com o cliente é outro capítulo crucial. Em tempos de comunicação instantânea, o cliente espera mais do que uma petição bem redigida. Ele espera ser ouvido, acompanhado, tratado com humanidade. Escritórios que investem em comunicação clara, relatórios regulares, canais de atendimento ágeis e personalizados constroem reputações duradouras. Fidelizar um cliente é tão estratégico quanto ganhar uma ação. E o melhor marketing ainda é a confiança gerada no atendimento cotidiano.
Mas é preciso ir além. Um escritório que pretende crescer com solidez precisa adotar políticas de compliance. Estabelecer códigos de conduta, mapear riscos, realizar auditorias internas e treinamentos são medidas que protegem a reputação e garantem que a atuação esteja alinhada com os valores da profissão. A ética não pode ser apenas uma cláusula de estilo. Deve ser uma prática diária.
Falar de gestão, portanto, é falar de futuro. Não aquele futuro frio e mecanizado, mas o futuro em que advogados e advogadas poderão exercer sua vocação com serenidade, sabendo que há estrutura por trás do esforço. É o futuro em que talentos não se perdem na exaustão, em que o escritório deixa de ser um lugar de sobrevivência e passa a ser um espaço de criação, de aprendizado, de excelência.
A advocacia, como poucas profissões, carrega um sentido de missão. Mas toda missão precisa de uma base. Essa base se chama gestão. E quando ela é bem-feita, não rouba o tempo da advocacia. Ela o devolve, com mais qualidade. O tempo da escuta, da leitura atenta, da conversa com o cliente, da reflexão estratégica. O tempo daquilo que nenhuma máquina pode fazer em nosso lugar.
A alma do escritório está na forma como ele é cuidado. E cuidar de um escritório é, em última instância, cuidar da própria advocacia.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum.