OPINIÃO

A anistia dos golpistas e a impossibilidade de perdoar os atentados à Democracia – Por Álvaro Quintão

A anistia aos golpistas de 8 de janeiro enfraquece as instituições e ignora a necessidade de justiça, pois a verdadeira pacificação vem da afirmação do Estado de Direito

Placas formam a frase "sem anistia" em janela de apartamento no trajeto da manifestação de Jair Bolsonaro em Copacabana.Créditos: Silvia Machado/Thenews2/Folhapress
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No último ano, o Brasil vivenciou um dos episódios mais sombrios de sua história recente. O ataque às sedes dos Três Poderes em 8 de janeiro de 2023 não foi apenas uma manifestação de violência; foi uma tentativa deliberada de subverter a ordem democrática que sustentamos com tanto esforço desde a redemocratização. Entretanto, o que vem depois dessa tentativa de golpe, e mais especificamente o debate sobre a possibilidade de uma anistia para aqueles que protagonizaram esse atentado, demanda uma reflexão que ultrapassa a lógica dos fatos em si e mergulha em uma análise mais profunda sobre o que significa o perdão a quem atentou contra o próprio tecido da nossa democracia.

O pedido de anistia aos golpistas é um movimento que tenta ressignificar o papel da lei e da justiça em nosso país. De início, essa proposta soa como uma tentativa de pacificação, uma promessa de união, mas ao olharmos mais de perto, vemos que ela compromete os pilares mais profundos da República e coloca em risco as bases que sustentam a convivência democrática. Não é uma ideia inocente. É uma ideia perigosa. Pois, ao anistiar aqueles que atentaram contra a democracia, estaríamos não apenas isentando criminosos de suas responsabilidades, mas também sinalizando à sociedade que a violência política, quando orquestrada por um grupo suficientemente grande e articulado, pode ser perdoada.

A primeira questão que surge diante dessa proposta é de ordem moral. Como podemos olhar para os atos de 8 de janeiro e dizer que eles devem ser esquecidos, diluídos em um gesto de “paz”? O que foi ali cometido não foi um simples protesto, mas uma tentativa de ruptura da ordem constitucional. A invasão do Congresso Nacional, do Palácio do Planalto e do Supremo Tribunal Federal não foi uma revolta espontânea, mas uma ação orquestrada que visava derrubar um governo eleito democraticamente. Aqueles que participaram dos ataques sabiam muito bem o que estavam fazendo. Não há espaço para ingenuidade. Eles estavam agindo de forma deliberada, como agentes de uma conspiração que, se vitoriosa, teria instaurado no Brasil um regime de exceção.

A partir desse reconhecimento, a proposta de anistia se revela como um erro estratégico e jurídico de grandes proporções. O Brasil tem uma longa história de resistência à impunidade, e cada vez que cedemos a ela, pagamos um preço alto. Vimos isso na década de 1970, com a Lei da Anistia, que, em nome da reconciliação nacional, perdoou tanto os torturadores quanto os torturados, em um gesto que até hoje gera controvérsia e dor. Não podemos permitir que a história se repita. A concessão de perdão para aqueles que atentaram contra nossa ordem constitucional e democrática equivale a apagar a memória de nossa luta pela liberdade. Estaríamos dizendo que não importa o que tenha sido feito, que não importa o quanto a violência tenha sido dirigida contra a nossa própria casa – tudo pode ser esquecido se a "paz" for restaurada, sem a devida reparação.

Legalmente, a situação é ainda mais grave. A Constituição Brasileira de 1988, nossa Carta Magna, estabelece de forma clara que o Estado Democrático de Direito é uma cláusula pétrea, ou seja, não pode ser alterado por qualquer que seja a vontade do legislador. Aqueles que violaram os princípios da nossa Constituição, tentando desestabilizar o regime democrático, devem ser responsabilizados. Não se trata de um mero gesto simbólico, mas de uma necessária afirmação de que a democracia não se negocia, não se perdoa como se fosse um erro trivial. Não há perdão para o ataque ao Estado de Direito, como não houve para aqueles que cometeram os crimes da ditadura militar.

Os crimes de 8 de janeiro são de natureza gravíssima e merecem ser tratados como tal. Não podemos ceder à tentação de conceder uma anistia que, na prática, exime os golpistas de qualquer responsabilidade, enfraquecendo as instituições e estimulando a impunidade. A ideia de pacificação, que alguns defendem, é, na verdade, um falso consolo. Ela ignora o fato de que a verdadeira paz não vem do esquecimento, mas da justiça. A anistia significaria uma renúncia ao poder punitivo do Estado, uma falha em oferecer à sociedade uma resposta adequada aos ataques sofridos.

Devemos lembrar que a democracia é construída a cada dia, com pequenos gestos de respeito à Constituição, às leis e às instituições. O que houve em 8 de janeiro foi um atentado contra esse processo de construção e consolidação democrática. Anistiar os envolvidos é anistiar a violência, é dar um sinal de que é possível tentar destruir a democracia e sair impune. A mensagem seria clara: em nosso país, o Estado de Direito pode ser posto em risco sem consequências.

Portanto, a anistia não é uma solução, mas um agravante. Ela não traz paz, ela dilui a força das nossas instituições e enfraquece a confiança da sociedade em suas próprias estruturas democráticas. A verdadeira reconciliação não passa pelo esquecimento das ofensas à democracia, mas pela justiça. A única maneira de pacificar o país é mostrar que não há espaço para aqueles que tentam subverter a ordem, que o Estado Democrático de Direito será defendido a qualquer custo e que ninguém – jamais – estará acima da lei.

Por essas razões, a anistia proposta não só é juridicamente injustificável, como também politicamente irresponsável. O Brasil precisa olhar para frente, mas não pode ignorar os erros do passado recente. Precisamos aprender com a história, e não repeti-la. As lições da ditadura, que ainda nos assombram, devem servir de guia para evitar que os erros do passado se tornem o modelo para o futuro. A democracia não pode ser tratada com a leveza de um perdão. Ela é frágil, exige cuidado e vigilância constantes. E, em última instância, deve ser respeitada e defendida de qualquer ameaça que ouse tentar abalar seu alicerce.

Portanto, não haverá anistia. Não porque desejamos o castigo, mas porque a punição é um ato de preservação da democracia. E a democracia, esta nossa frágil, mas preciosa democracia, merece ser cuidada com seriedade e rigor, nunca com complacência.

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum

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