LITERATURA BRASILEIRA

Guimarães Rosa insere personagens chineses no coração do sertão brasileiro

João Manço, em ‘Grande Sertão: Veredas’, e Seô Quim, no conto ‘Orientação’ de ‘Tutaméia’, revelam o olhar plural e cosmopolita do autor sobre o Brasil profundo

João Manço, em ‘Grande Sertão: Veredas’, e Seô Quim, no conto ‘Orientação’ de ‘Tutaméia’, revelam o olhar plural e cosmopolita do autor sobre o Brasil profundo | Quadro de Johann Moritz Rugendas registra chineses cultivando chá no Brasil.
Guimarães Rosa insere personagens chineses no coração do sertão brasileiro.João Manço, em ‘Grande Sertão: Veredas’, e Seô Quim, no conto ‘Orientação’ de ‘Tutaméia’, revelam o olhar plural e cosmopolita do autor sobre o Brasil profundo | Quadro de Johann Moritz Rugendas registra chineses cultivando chá no Brasil.Créditos: Fotomontagem Wikipedia e domínio público
Escrito en CULTURA el

Quem lê os livros de João Guimarães Rosa logo entende que o sertão mineiro que ele criou não é apenas um lugar seco, povoado por jagunços e conflitos. É um universo cheio de surpresas, onde até um personagem de origem chinesa pode aparecer — e aparece mesmo, tanto no famoso romance Grande Sertão: Veredas quanto no conto "Orientação", do livro Tutaméia.

João Manço: o jagunço silencioso

No romance Grande Sertão: Veredas, publicado em 1956, surge João Manço, um jagunço diferente dos outros. É calado, disciplinado, de “olhos estiradinhos” e sem barba — traços que remetem à origem asiática, provavelmente chinesa. Ele faz parte do grupo de Joca Ramiro, um dos grandes líderes jagunços da trama, e depois segue sob o comando de Riobaldo, o protagonista-narrador.

Seu apelido, “Manço”, já diz muito: é alguém pacífico, introspectivo, que observa mais do que fala. Mesmo sem ser um dos personagens centrais, ele chama atenção justamente por destoar do ambiente violento e ruidoso à sua volta. É o “estrangeiro” que, mesmo quieto, transforma o mundo ao redor.

Pode parecer improvável encontrar um chinês no sertão mineiro, mas Guimarães Rosa era atento aos relatos populares e fazia extensas viagens de campo. E há registros históricos de imigrantes chineses vivendo em áreas rurais do Brasil entre o final do século XIX e o início do século XX. João Manço, nesse sentido, pode ser a representação ficcional de uma presença real — ainda que esquecida — da história brasileira.

Seô Quim: o amor que vira aculturação

Já no conto “Orientação”, do livro Tutaméia (1967), Rosa apresenta outro personagem de origem chinesa: Yao Tsing-Lao. Ele chega ao sertão sem explicações, e seu nome vai sendo abrasileirado aos poucos: vira Joaquim, depois Quim, até ser chamado de Seô Quim. Trabalhador, educado e sempre sorridente — ou “sério sorrisoteiro”, como diz Rosa — ele começa como cozinheiro e acaba dono de uma pequena chácara.

Seô Quim se casa com a sertaneja Rita Rola, uma mulher rude e desajeitada. Ele a trata com carinho e a compara a objetos delicados, como porcelana e marfim. Mas o casamento desanda. Quim parte silenciosamente e, surpreendentemente, é Rita quem começa a se transformar: imita seus gestos, adota seu silêncio e até sua pele ganha um “tom de açafrão”. É como se ela, e não ele, tivesse passado por uma aculturação — uma “sinicização” do sertão.

O conto é cheio de brincadeiras linguísticas, como “felizquim” e “esquisitâncias”, misturando sons do português com ecos de um “chinês inventado”. O título “Orientação” também tem duplo sentido: fala do Oriente, mas também da busca por direção, por sentido.

Visão da especialista

A professora emérita da USP, Walnice Nogueira Galvão, é uma das maiores especialistas na obra de Guimarães Rosa. Nascida em 1937, ela escreveu diversos estudos de referência sobre o autor, como As formas do falso (1972), Mitológica rosiana (1978) e Mínima mímica (2008). 

Em seu artigo “Chinesices no sertão: um conto de Guimarães Rosa”, publicado na revista Luso-Brazilian Review, ela analisa com profundidade a presença desses personagens asiáticos na literatura rosiana.

Para Walnice, João Manço representa um gesto cosmopolita de Rosa, que introduz diversidade étnica num universo geralmente descrito como fechado e monocultural. Mesmo discreto, o personagem rompe com a ideia de um sertão homogêneo e revela o Brasil como país múltiplo e mestiço.

Já no conto “Orientação”, ela interpreta a história como uma fábula sobre aculturação invertida, na qual a sertaneja é quem muda a partir do contato com o estrangeiro. Rosa, segundo a crítica, desmonta estereótipos nacionalistas e propõe uma visão mais ampla do que é ser brasileiro.

Um sertão mais plural

Tanto João Manço quanto Seô Quim são figuras que não impõem sua presença, mas transformam profundamente os espaços que ocupam. Representam o “outro”, a diferença, a alteridade — e, ao mesmo tempo, nos convidam a repensar o próprio sertão como um lugar de encontros culturais, não de isolamento.

Guimarães Rosa mostra que até os personagens mais silenciosos podem provocar grandes mudanças. E que, na literatura, como na vida, o Brasil é feito também de histórias inesperadas — inclusive de chineses que atravessaram veredas improváveis para deixar sua marca no coração do sertão.

Um marco da literatura brasileira e mundial

Reprodução Amazon

Grande Sertão: Veredas (1956) é amplamente reconhecido como um dos maiores romances da literatura brasileira — e também uma das obras-primas da literatura universal do século XX. Escrito por João Guimarães Rosa, o livro revolucionou a forma de escrever em língua portuguesa e transformou o sertão mineiro em cenário de reflexões filosóficas, existenciais e poéticas.

Apesar de se passar no sertão de Minas Gerais, o livro vai muito além do regionalismo. Rosa quebra os limites da literatura folclórica e recria o sertão como um espaço mítico, onde a violência, o amor, a fé e a dúvida convivem em tensão constante. 

O narrador, Riobaldo, relembra sua trajetória como jagunço e sua relação enigmática com Diadorim, personagem central de uma história marcada por guerras, dilemas morais e a eterna dúvida sobre o que é o bem e o que é o mal.

A linguagem do romance também é um feito à parte. Rosa reconstrói o português sertanejo com uma criatividade sem precedentes: mistura neologismos, arcaísmos, ditados populares e estruturas inusitadas, criando uma prosa musical, ritmada e profundamente original. Por isso, seu estilo costuma ser comparado ao de autores como James Joyce, William Faulkner e Franz Kafka.

Mas Grande Sertão não é só inovação formal — é também uma obra de ideias. A grande pergunta que atravessa o livro é: “O diabo existe?” A partir dela, o romance mergulha em temas como livre-arbítrio, culpa, destino, espiritualidade, amor proibido e morte. Questões universais, tratadas a partir da vivência de um sertão que é ao mesmo tempo real e simbólico.

Importância para a literatura brasileira

  • Redefiniu o cânone nacional, rompendo com o realismo tradicional e abrindo caminho para uma nova forma de narrativa no Brasil.
     
  • Consagrou Guimarães Rosa como um autor de dimensão internacional, ao lado de nomes como Kafka, Faulkner e Joyce.
     
  • Influenciou gerações de escritores, pesquisadores e leitores, tornando-se objeto central de estudos acadêmicos até hoje.

Grande Sertão: Veredas foi traduzido para diversos idiomas e é frequentemente citado como uma das maiores contribuições da literatura brasileira para o mundo. O crítico Antonio Candido, um dos maiores intelectuais brasileiros, afirmou que o romance é “um dos livros mais importantes da literatura universal contemporânea”.

Livro das entrelinhas e do enigma

Reprodução Amazon

Publicado em 1967, pouco antes da morte de João Guimarães Rosa, Tutaméia – Terceiras Estórias é sua última obra lançada em vida e também uma das mais enigmáticas. O título vem de uma expressão arcaica que significa “pequena porção de muita coisa” — o que já indica o tom da coletânea: contos curtos, densos, repletos de significados ocultos e de experimentações com a linguagem.

Composta por 40 histórias breves, a obra marca uma virada no estilo de Rosa. Se em livros anteriores como Sagarana ou Primeiras Estórias havia maior linearidade narrativa, em Tutaméia predomina o fragmento, o enigma, o jogo sonoro e o humor linguístico. São narrativas que exigem do leitor atenção total às entrelinhas, às metáforas e aos jogos de palavras. É a prosa levada ao seu ponto mais poético e radical.

Além dos contos, o livro é aberto por um texto liminar, quase um manifesto literário, em que Rosa reflete sobre o fazer literário, a criação e o mistério da linguagem. Esse texto inicial é considerado por muitos críticos como uma chave de leitura para toda sua obra, reforçando a ideia de que literatura é também uma forma de filosofia e invenção do mundo.

Entre os contos mais estudados está “Orientação”, que apresenta o personagem Yao Tsing-Lao (ou Seô Quim), um chinês que se instala no sertão e vive um processo de aculturação invertida. A narrativa é um exemplo da maestria de Rosa ao integrar alteridade, linguagem e temas universais em um espaço regional brasileiro. É também um conto que dialoga com outros temas rosianos, como a transformação, o silêncio e o desencontro.

Assim, Tutaméia não apenas encerra a produção literária de Rosa com originalidade e ousadia, mas reafirma seu compromisso com a literatura como desafio, experimentação e mergulho na alma humana — com suas dobras, paradoxos e mistérios.

Chineses no Brasil: uma presença discreta, mas duradoura

A imigração chinesa para o Brasil tem uma história pouco conhecida, mas significativa — e ajuda a contextualizar personagens como João Manço e Seô Quim na obra de Guimarães Rosa. 

A chegada dos chineses ao território brasileiro remonta ao século XIX, embora em número bem menor do que outras comunidades imigrantes, como italianos, japoneses ou alemães.

Primeiros registros: século XIX

Os primeiros chineses vieram ao Brasil ainda no período imperial. Em 1810, Dom João VI autorizou a vinda de trabalhadores chineses para cultivar chá nas fazendas do Rio de Janeiro, com o objetivo de implantar uma produção local que rivalizasse com a da Ásia. Um grupo pequeno foi trazido de Macau (colônia portuguesa na China), mas o experimento não teve continuidade.

Mais tarde, ao longo do século XIX, especialmente após a abolição da escravidão em 1888, o Brasil começou a buscar mão de obra imigrante para substituir os trabalhadores escravizados. Ainda que em menor número, alguns chineses chegaram por vias indiretas — como por exemplo, via Peru ou Cuba, onde muitos estavam trabalhando em plantações ou como operários.

Imigração no século XX

No início do século XX, a presença chinesa no Brasil ainda era bastante reduzida, mas começou a se consolidar em pequenas comunidades, principalmente em São Paulo e em algumas regiões do interior. A maioria veio de forma espontânea, atraída por oportunidades comerciais e econômicas.

Esses imigrantes se estabeleceram em áreas urbanas, muitas vezes como comerciantes, cozinheiros ou trabalhadores autônomos. Poucos, mas não inexistentes, seguiram para regiões rurais — o que pode ter inspirado figuras literárias como João Manço, em Grande Sertão: Veredas.

Crescimento após 1949

Com a Revolução Chinesa e a criação da República Popular da China em 1949, o fluxo migratório mudou. A maioria dos chineses que chegou ao Brasil nas décadas seguintes vinha de Taiwan, Hong Kong ou do Sudeste Asiático, fugindo de instabilidades políticas. Nessa fase, formou-se uma comunidade mais estruturada, especialmente na cidade de São Paulo, com escolas, templos e centros culturais.

Chineses hoje no Brasil

Hoje, estima-se que haja cerca de 250 mil descendentes de chineses vivendo no Brasil. Muitos atuam no comércio, na indústria têxtil, na gastronomia e, mais recentemente, em empresas de tecnologia e infraestrutura.

A presença chinesa no país se intensificou também com os laços econômicos e diplomáticos mais estreitos entre Brasil e China nas últimas décadas. Isso reacendeu o interesse por estudar essa relação histórica e cultural — inclusive na literatura.

 

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