OPINIÃO

Trump, a morte de João Paulo I e a desesperança como projeto

No PT, que já fora o maior partido de esquerda do hemisfério sul, fica sempre uma pergunta: onde foi que perdemos a capacidade de dialogar com as massas, compreendê-las e representá-las?

Glauber Piva.Créditos: Arquivo pessoal
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Janeiro de 2025 e o mundo assiste perplexo à explosão de uma bomba de efeito moral, emocional e geopolítico: Trump. No Brasil, ainda que emocionados pelas indicações de Ainda estou aqui para o Oscar, também estamos sendo surrados pela indústria de fake news, o que faz com que o PT e seus aliados se perguntem sobre o próprio terreno que acolhe os alicerces do que se chama até aqui pelo nome de Política. No PT, que já fora o maior partido de esquerda do hemisfério sul, fica sempre uma pergunta: onde foi que perdemos a capacidade de dialogar com as massas, compreendê-las e representá-las? Quando foi que deixamos de ser porta-vozes da esperança ou, pior, quando foi que deixamos de portar a esperança como ferramenta para a política que praticamos?

Em artigo recente, o professor Juarez Guimarães disse que "ao contrário da fé, não apenas de origem transcendental, mas mesmo aquelas que se apresentam em uma linguagem laica, da ordem das certezas, a esperança reivindica humildemente o possível e, em sua práxis, alimenta-se da dúvida para fazer as perguntas necessárias, corrigir caminhos e estabelecer a necessária condicionalidade das perspectivas. A esperança precisa de razões para seguir adiante apontando caminhos possíveis". Este texto é um ensaio em busca das origens da quebra da bússola da esperança no PT.

A Igreja Católica e a desarticulação da Teologia da Libertação

A morte prematura de João Paulo I, em 1978, ano em que também se organizava o Movimento Pró-PT, que culminaria na fundação oficial do partido em 1980, marcou um dos momentos mais enigmáticos da história recente da Igreja Católica. Seu pontificado, de apenas 33 dias, foi interrompido de forma abrupta, dando lugar a João Paulo II, que rapidamente se tornou um bastião do conservadorismo católico. Embora a conexão direta entre esse evento e os desdobramentos políticos no Brasil e na América Latina nem sempre seja explicitamente articulada, é possível traçar linhas que conectam a reorientação da Igreja com o declínio da Teologia da Libertação e, por extensão, com as transformações internas do Partido dos Trabalhadores (PT), particularmente no campo da formação política e de seu comportamento eleitoral.

João Paulo I representava, ao que tudo indica, uma continuidade das reformas iniciadas pelo Concílio Vaticano II (1962-1965), que buscavam aproximar a Igreja das populações mais pobres e promover um cristianismo de caráter coletivo mais comprometido com as causas sociais. Sua morte não apenas interrompeu esse projeto, mas abriu espaço para uma guinada conservadora sob João Paulo II, um movimento teológico com sentido individual que transforma as perspectivas de Reino de Deus numa experiência pessoal e não comunitária – uma tese em franco diálogo com o capitalismo neoliberal contemporâneo. O novo papa, junto com o então cardeal Joseph Ratzinger, promoveu uma sistemática repressão à Teologia da Libertação, movimento que tinha nas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) sua principal expressão na América Latina.

As CEBs eram espaços de organização popular que combinavam espiritualidade e ação política, funcionando como celeiros de lideranças comunitárias e sindicais. Esse modelo foi fundamental na fundação do PT, fornecendo uma base de mobilização enraizada nas periferias urbanas e nas zonas rurais. Contudo, a intervenção conservadora do Vaticano desarticulou essas redes ao censurar teólogos como Leonardo Boff e enfraquecer a liderança progressista dentro da Igreja, substituindo bispos comprometidos com a Teologia da Libertação por outros alinhados a um discurso mais tradicionalista.

Esses dois processos históricos ocorreram em campos que, embora distintos, estavam profundamente conectados pela luta social e pelo desejo de transformação da sociedade brasileira, então sob o jugo da ditadura cívico-militar e suas estratégias de aprofundamento das desigualdades regionais.

O PT e a mudança de estratégia

Nos anos 1980, o PT surgiu como uma experiência única de articulação entre trabalhadores urbanos, movimentos sociais, intelectuais e setores progressistas da Igreja. Esse arranjo foi possibilitado, em grande medida, pela efervescência das CEBs e pela ênfase na formação política de base. A proposta não era apenas disputar eleições, mas também formar consciências e transformar a sociedade a partir de uma perspectiva emancipatória.

À medida que o conservadorismo católico se consolidava e as CEBs perdiam força, porém, o PT também passou por transformações. Nos anos 1990 e 2000, com o fortalecimento do projeto eleitoral do partido, a dimensão da formação política foi gradualmente perdendo protagonismo. A disputa por eleitores tornou-se o centro da estratégia petista, acompanhando uma lógica de profissionalização das campanhas e de aproximação com setores mais amplos da população, mas menos ideologicamente alinhados, ou, dito de outra forma, com acesso mais difícil às ferramentas de formação política tão importantes para o enfrentamento da ditadura e fundação do PT. Essa mudança é compreensível dentro do contexto de um sistema político adverso, embora tenha trazido consequências negativas para a sustentação de um projeto transformador de longo prazo.

A Renovação Carismática Católica e o mercado religioso no Brasil

Como uma terceira face de uma moeda imaginária, vale comentar sobre o surgimento da Renovação Carismática Católica (RCC) nos Estados Unidos, em meados da década de 1960, como parte de um movimento global de renovação espiritual influenciado pelo pentecostalismo. Inspirada por práticas de louvor, oração em línguas, curas e uma experiência emocional intensa, a RCC rapidamente se espalhou pelo mundo, chegando ao Brasil no início da década de 1970. Seu crescimento foi impulsionado por encontros e eventos de massa, muitas vezes promovidos por líderes eclesiásticos conservadores que viam nela uma ferramenta para revitalizar a fé católica e conter o avanço das igrejas evangélicas, especialmente neopentecostais.

Durante a Guerra Fria, os EUA investiram fortemente em movimentos religiosos na América Latina como forma de contrabalançar a influência da Teologia da Libertação e de movimentos progressistas, que eram associados ao comunismo. A RCC foi vista como um aliado estratégico nessa disputa, promovendo uma religiosidade que enfatizava a experiência individual e a adesão a valores morais conservadores.

Embora os detalhes sobre o financiamento sejam fragmentados, há consenso de que o crescimento da RCC foi favorecido por um alinhamento entre as elites religiosas e políticas em nível internacional, impulsionado por recursos financeiros e estratégias organizacionais cuidadosamente planejadas e que, para surpresa de ninguém, teriam atuado em rede também em apoio à eleição de Donald Trump em 2024.

No Brasil, a Renovação Carismática Católica encontrou forte apoio institucional no contexto da guinada conservadora da Igreja liderada por João Paulo II e Joseph Ratzinger. Esses líderes, ao promoverem um alinhamento doutrinário mais rígido, utilizaram a RCC como uma forma de resposta ao que consideravam a "politização excessiva" da Teologia da Libertação e das Comunidades Eclesiais de Base. A Renovação Carismática se destacou como uma alternativa que despolitizava a prática religiosa e enfatizava a dimensão pessoal e emocional da fé, afastando os fiéis de uma espiritualidade ligada às lutas sociais.

O sociólogo Reginaldo Prandi, em seus estudos sobre a religião no Brasil, analisa a RCC dentro do contexto do mercado religioso. Segundo Prandi, a RCC representa um modelo híbrido, que combina elementos tradicionais do catolicismo com práticas e discursos do pentecostalismo, atraindo fiéis que buscam uma experiência espiritual mais intensa, mas que desejam permanecer ligados à Igreja Católica. Ele também destaca como esse movimento foi estratégico para a Igreja Católica manter sua base fiel, diante do crescimento vertiginoso das igrejas evangélicas. Contudo, Prandi observa que a RCC, ao priorizar uma espiritualidade individualista, contribuiu para o enfraquecimento das redes comunitárias e da dimensão política que anteriormente caracterizava o catolicismo popular no Brasil. Como se vê, a RCC, celeiro da teologia da prosperidade com viés católico, se consolidou como um pilar do conservadorismo religioso no Brasil ao mesmo tempo que enfraqueceu as bases progressistas que haviam sido fundamentais para a aliança entre setores da Igreja e movimentos sociais.

A Fragmentação do Mercado Religioso e o Crescimento do Conservadorismo

Enquanto o mercado religioso no Brasil se transformava, o PT mudava seu foco. O enfraquecimento da Teologia da Libertação e das CEBs e, paralelamente, o crescimento da RCC, abriu espaço para o crescimento das igrejas evangélicas neopentecostais, que apresentavam uma abordagem mais individualista e desvinculada de críticas estruturais ao capitalismo. Essas igrejas, por sua vez, passaram a atuar diretamente na política, organizando bancadas parlamentares e promovendo uma agenda conservadora que tensiona temas como direitos reprodutivos, questões de gênero e direitos humanos. É necessário olhar para esses movimentos para compreender a dinâmica social na qual estamos inseridos hoje.

O crescimento desse conservadorismo religioso não pode ser dissociado da falta de uma resposta mais incisiva por parte da Igreja progressista, que foi silenciada, e do próprio PT, que se viu cada vez mais distante das mobilizações populares que marcaram suas origens. A ênfase em alianças pragmáticas para garantir vitórias eleitorais reduziu o diálogo do partido com as bases populares e religiosas, deixando o campo livre para que discursos moralizantes e conservadores ganhassem terreno.

O PT nasce como um movimento político absolutamente vivo e potente. Fruto da busca pela redemocratização do país e enfrentamento da carestia. O PT se tornou a expressão da energia reunida de diferentes movimentos. Em torno do PT estavam intelectuais dos mais notáveis, os exilados que estavam de volta ao país, presos políticos recém-libertados, o movimento sindical urbano e os de luta pela terra e, obviamente, o movimento religioso católico, principalmente, mas também, ainda que lateralmente, do protestantismo histórico, alimentados pela leitura bíblica da Teologia da Libertação.

Imanência em Marx e a vida como ela é

Talvez seja exageradamente disruptivo falar em Marx nesse momento de obscurantismo crescente e superficialidades insistentes. Mas, vamos lá. Marx propõe um método de análise da imanência e procura estabelecer uma relação dialética entre a análise dinâmica do capitalismo e suas contradições de classe. Ele busca compreender a realidade a partir de seus próprios processos internos, recusando explicações externas ou transcendentais para os fenômenos sociais, econômicos e históricos. Essa abordagem implica que o capitalismo, como sistema social e econômico, contém dentro de si as contradições que determinam tanto sua dinâmica quanto suas possibilidades de transformação. Entendo ser necessário recorrer a esse método para avançarmos na compreensão do que estamos vivendo.

Parte da perplexidade atual das esquerdas está no fato de que, filhas do humanismo, não conseguem compreender o niilismo neoliberal que despreza os principais valores que as fundaram: defesa da vida, promoção de direitos de cidadania e combate às injustiças sociais. Talvez haja uma pergunta sussurrada entre seus militantes sobre a validade da esperança política num contexto no qual é preciso ser pragmático para sobreviver.

A transformação revolucionária pensada por Marx, em seu método, não vem de fora do capitalismo, mas de suas próprias contradições internas. O proletariado, enquanto classe explorada e alienada, é também o sujeito revolucionário potencial, porque está colocado estruturalmente em oposição ao capital e tem a capacidade de reorganizar as relações de produção de forma coletiva e igualitária. Esse proletariado hoje está também disperso por um sem-número de igrejas e outras iniciativas de privatização dos horizontes. Compreender os movimentos da história são fundamentais na costura de nossas lutas.

Desafios

Todo partido político é um projeto em movimento. O PT, ao nascer, era um movimento amplo, diverso e transformador se tornando um partido político que pretendia disputar eleições e vencê-las. Hoje, 45 anos depois, com muitas experiências de lutas sociais e de políticas públicas lideradas, o que foi feito da esperança fundamental?

Em alguma medida talvez possamos dizer que perdeu vigor o desejo de ruptura com o sistema. A revolução, para o proletariado rural - que seguiu migrando pada as cidades – não aconteceu. A qualidade de vida nas cidades ainda é muito frágil e o urbano, que seguiu o curso das profundas transformações globais - globalização, modernização, diminuição dos postos de trabalho, e cada vez mais requerendo mão de obra mais e mais qualificada – é um território privilegiado da privatização acelerada e aparentemente irrevogável de nossas utopias. A busca por fama imediata, sexo sem responsabilidade e dinheiro rápido parecem ter se tornado hegemônica na sociedade, nublando, assim, projetos utópicos coletivos e, o que é pior, fragilizando a luta por políticas públicas universalizantes. É neoliberalismo que chama, né!?

A morte de João Paulo I, embora não seja o único fator, pode ser vista como um ponto de inflexão simbólico que abriu caminho para uma Igreja menos comprometida com as lutas populares e mais alinhada ao conservadorismo global. Esse processo contribuiu para desarticular uma aliança histórica entre religião e política progressista, com impactos profundos no projeto do PT e na configuração do campo religioso e político do país.

Se o PT quiser retomar suas raízes transformadoras, precisa estar conectado com as grandes causas de nosso tempo. A crise climática, a violência contra periferias e crianças, o ódio às mulheres, a pauta racial e a agenda urbana são parte do mesmo problema de fratura da esfera pública. Não há saída fora da política, assim como não há caminhos para qualquer transformação social sem que nos voltemos à vida das pessoas e seus territórios, sem que compreendamos suas dores e seus sonhos, sem que sejamos parte de suas causas.

É fundamental revisitar a dimensão da formação política e recuperar o diálogo com as bases populares, incluindo os setores religiosos progressistas. Em um contexto de crescente individualização, polarização política e avanço do conservadorismo, essa tarefa não é apenas desejável, mas urgente para a construção de um projeto político mais amplo e sustentável.

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum. 

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