OPINIÃO

PL dos Estupradores: O "Conto de Aia" rumo à realidade distópica do Brasil

Controle do Estado sobre o corpo feminino é retratado em série, que reflete sobre a perda dos direitos das mulheres e a exploração de seus corpos

Mulheres no seriado 'O Conto da Aia'.Créditos: Divulgação/ Hulu
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Ilustrações, memes e cartuns criticando o PL 1904/2024 têm viralizado nas redes sociais desde que o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), aprovou a urgência do projeto de lei em apenas 23 segundos, para que não passasse por comissões. Caso ele seja pautado e aprovado, uma mulher que interromper uma gravidez decorrente de estupro poderá enfrentar uma pena maior que a do próprio estuprador, de 20 anos!

Muitas dessas ilustrações contra o PL fazem comparações entre esse episódio, talvez considerado um dos mais absurdos já feitos em plenário no Brasil, e a série americana "The Handmaid's Tale", também conhecida em português como "O Conto da Aia" (2019). Baseada no livro homônimo de Margaret Atwood, originalmente publicado em 1985, a série estreou em 2017 nos Estados Unidos e imagina um futuro não muito distante onde mulheres são submetidas a uma teocracia autoritária, onde elas são privadas de seus direitos básicos e têm seus corpos explorados.

Crédito: Reprodução/Instagram

Em uma entrevista concedida em 2021 a própria autora da obra já afirmou: “A questão do aborto é muito simples: o Estado é dono dos nossos corpos?”. Inúmeros dados mostram que mais de 75% dos casos de estupro são com meninas de até 14 anos no Brasil. A aprovação do PL aumenta a violência contra as crianças e coloca a vida das mulheres em risco de diversas formas, forçando-as a buscar procedimentos clandestinos e inseguros. 

Fundamentalismo

Esse cenário é assustadoramente similar ao retratado no “O Conto de Aia”, onde as mulheres são reduzidas a meras ferramentas de reprodução, sem voz ou poder sobre suas próprias vidas. Na série, as personagens aparecem vestindo roupas estranhas em uma casa de estilo clássico, levando um tempo para percebermos que não se trata do passado, mas do futuro. Um grupo ultraconservador e religioso toma o poder nos Estados Unidos através de um golpe de Estado, impondo um modo de vida extremamente rígido.

Para complicar, a maioria das mulheres no mundo se tornaram estéreis, resultando no recrutamento compulsório das poucas que ainda podem gerar crianças. Essas mulheres, chamadas de aias, são forçadas a servir nas casas dos líderes do regime, dando filhos para os casais.

Para engravidarem, as aias são submetidas a constantes e verdadeiros estupros ritualizados, vivendo uma vida cheia de regras e limitações. Elas perdem seus nomes reais, não podem andar sozinhas pelas ruas, são constantemente vigiadas e sequer podem ler. Em um cenário tão opressivo, a revolta não demora a surgir: seja na resistência individual de cada mulher, seja na organização clandestina de pessoas que se opõem ao novo regime, a série retrata o início da rebelião contra um sistema extremamente machista e conservador.

No Brasil, além de machista e racista, a cultura da objetificação ainda torna o corpo da mulher um instrumento meramente sexual. A ideia de que a mulher possui um corpo voluptuoso, contribui para os altos índices de estupro e feminicídio, principalmente entre mulheres negras. Isso se torna ainda mais perigoso quando a indústria usa essa objetificação para atrair clientes e consumidores, retroalimentando a naturalização do abuso, o que acontece com frequência.

Se o Estado (nesse caso, o Congresso) propõe um projeto de lei que reforça todos esses estereótipos e ainda reduz o corpo feminino a uma mera máquina reprodutiva e instrumental, é como dar início a uma distopia opressiva como a retratada por Atwood.

Passo atrás nos direitos das mulheres

Com certeza nenhuma mulher ou menina gostaria de passar pela experiência do aborto, mas tambem não tê-lo de forma segura quando é necessário, é deixar de lado uma questão muito importante. Polarizar o assunto, estigmatizá-lo e reduzi-lo a questões morais ou religiosas é opção para mentes contidas em sua própria bolha ou satisfeitas com o pensamento do senso comum, mesmo que o assunto não seja fácil de refletir.

Aprovar um PL assim é criar um absurdo em forma de lei e retroceder milhares de anos. Caso os que propuseram o projeto estivessem mesmo preocupados com a vida, pensariam em políticas públicas voltadas para a violência contra a mulher, a educação sexual em escolas, e tantos outros projetos para prevenir crimes desse tipo, ao invés de propor o abandono e a tortura psicológica às mulheres.

Embora se tenha convicções pessoais contra o aborto, isso não impede de se opor ferrenhamente a qualquer projeto que defenda a criminalização das mulheres que abortam. Assim como se é contra o suicídio, é possível defender veementemente a proteção das pessoas que passam por essa experiência, sem estigmatizá-los, uma vez que tentam sobreviver à tentativa de se matar. A polarização alimentada pela extrema direita, nesse contexto, é um veneno que impede a criticidade e a busca por soluções factíveis.

Além disso, outra questão a se pensar: como fica a vida da criança que nasce de um estuprador e uma mãe vítima de violência? “O Conto de Aia” mostra que medidas autoritárias estão mais presentes do que nunca dentro de democracias comuns, como a do Brasil, ainda recém governada por Bolsonaro (2019-2022), como bem relatado por vários autores. Políticas fascistas deixam rastros. 

“Eu acredito na resistência como acredito que não pode existir luz sem sombra; ou antes, não pode existir sombra a menos que exista também luz.” 

- Margareth Atwood