OPINIÃO

Tiros em Novo Hamburgo e a morte da Clínica

A psiquiatria e a psicologia são cotidianamente requisitadas a produzir laudos em escala industrial para justificar a permanência da prisão de uma massa carcerária pobre, negra e sem acesso ao devido e justo processo legal

Fotografias extraídas do livro 'Visões do Carcere', de Sandra Pesavento.Créditos: Arquivo Pessoal/Fábio Dal Molin
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“É claro que, desgraçadamente, há indivíduos perigosos, filhos malditos de Deus, que para a defesa social é preciso serem segregados da sociedade.

Desde o dia em que ,logo no início da humanidade, Caim matou seu irmão, a raça dos maus  se estendeu  pelo mundo  e se propagou rapidamente. É sabido como o Bem anda devagar e o mal voa. Os presídios são, pois, necessários” Achyles Porto Alegre, 1923, citado por Sandra Pesavento, 2009 em “Visões do Cárcere”

No século XIX foi o auge da Casa de Detenção em Porto Alegre, localizada no atual Centro Histórico e próxima a Santa Casa de Misericórdia, local para onde criminosos e criminosas de todas as partes do Rio Grande do Sul eram enviados, e trancafiados por distintos delitos: parricidas, estupradores, punguistas, homicidas, ex-escravizados que não pagavam sua “divida trabalhista” de alforria. Assim como hoje todos os recém chegados eram fotografados, catalogados e era feita uma descrição  detalhada de seu crime, suas possíveis e motivações suas origens raciais e sociais e a partir dessa análise eram feitas inferências sobre as causas.

Fotografias extraídas do livro  visões do carcere, de Sandra Pesavento. Foto: Arquivo Pessoal/Fábio Dal Molin
Fotografias extraídas do livro  visões do carcere, de Sandra Pesavento. Foto: Arquivo Pessoal/Fábio Dal Molin
Fotografias extraídas do livro  visões do carcere, de Sandra Pesavento. Foto: Arquivo Pessoal/Fábio Dal Molin
Fotografias extraídas do livro  visões do carcere, de Sandra Pesavento. Foto: Arquivo Pessoal/Fábio Dal Molin

É desta análise que nascem as expressões “perfil criminoso, perfil psicológico, ou perfil psiquiátrico”. Na Casa de Detenção de Porto Alegre tais perfis eram feitos por um antropólogo chamado Sebastião Leão (que virou nome de uma badalada rua do bairro Cidade Baixa). É importante ressaltar a genealogia da palavra “perfil”, oriunda da fotografia e das teorias criminológicas predominantes na época que privilegiavam a aparência física, as origens étnicas e raciais e o caráter ao mesmo tempo social e orgânico.

A medicina, o direito e a psicologia, as três ciências que contituirão o amálgama da criminologia, nascem. das elites européias no final do século XIX com os ideais iluministas e humanistas das Revoluções Francesa e Americana, duas nações coloniais e escravocratas, o que deu a esses ideais tintas de segregação, misoginia e constituem no chamado racismo científico. Os belos ideais  humanos de “igualdade, liberdade e fraternidade” não pertencem aos “não-humanos” ou “humanos inferiores” ou degradados: negros, indígenas, mulheres, pederastas, sifilíticos, alienados, indigentes e vagabundos.

Sebastião Leão era partidário das “modernas”teorias, como a do famoso criminólogo César Lombroso, que por sua vez comungava das teorias de Darwin, Spencer entre outros , que foram os criadores de uma ciência diagnóstica e psicométrica cujo objetivo era provar os ideais humanistas, ou seja, de que existem sub-raças dentro da espécie humana, e que a tarefa da criminologia era detectá-las e fazer a limpeza da humanidade e limpá-la do crime, da promiscuidade, da subversão, do feminismo e da vadiagem. O nome disso é higienismo, palavra que chegou até nossos dias escamoteada do hábito saudável de lavar as mãos e os alimentos e tomar banho para eliminar os germes causadores de doenças.

No seminário “Os Anormais” Michel Foucault analisa laudos criminológicos psiquiátricos realizados já nos anos 50 do século XX e denuncia a permanência desse caráter moral e classista, que  disfarçado de “ciência” produz aparatos sociais de verificação jurídica e regimes de verdade com o poder de dizer quem é ou quem não é um criminoso nato,  e quem deve ou não deve permanecer preso. Em “O nascimento da biopolítica” Foucault faz a surpreendente afirmação de que a ideia de que a doença mental, e os crimes que porventura sejam oriundos dela, seja originada no cérebro se popularizou no direito, e não na medicina. Nos estertores do século XVIII a dessacralização dos corpos para as primeiras aulas de anatomia, os fisiologistas começaram as suspeitas ainda incipientes de que o comportamento e as ideias humanas tinham alguma relação com defeitos anatômicos.

Sendo o comportamento criminoso um defeito moral, a ideia de que ele estaria ligado ao corpo, ou seja, a origem étnica, racial ou mesmo ao sexo (em breve surgirão teorias que ligarão o útero ao cérebro, e ao crime cometido por mulheres) vai consumar um casamento que dura até hoje no Brasil e no mundo , cujos filhos se chamaram laudos de cessação de periculosidade. No início tais laudos diziam respeito aos chamados criminosos insanos e determinavam sua prisão em manicômios ou sua inimputabilidade.  Nos dias de hoje, segundo a pesquisadora Cristina Rauter em seu livro “Criminologia e subjetividade no Brasil”, a psiquiatria e a psicologia são cotidianamente requisitadas a produzir laudos em escala industrial para justificar a permanência da prisão de uma massa carcerária pobre, negra e sem acesso ao devido e justo processo legal.

Essa resumida e generalizante genealogia dos exames criminológicos no Brasil nos traz a uma tragédia corriqueira em muitos países do mundo e que nesse mês de outubro foi anunciada no Brasil da pior maneira possível na cidade de Novo Hamburgo, no Rio Grande do Sul. O caminhoneiro Edson Fernando Crippa, de 45 anos, sócio frequentador de um CAC e portador de 2 pistolas, 2 rifles e um ainda incontável número de munições, protagonizou uma noite de terror após seus pais chamarem a brigada militar o acusando de agressão  durante um conflito familiar. Por motivos ainda desconhecidos, Edson reagiu a abordagem da polícia abrindo fogo, e assim prosseguiu durante uma noite inteira, resultando em mais de 12 feridos e na morte de três pessoas, dois policiais militares e seu pai, sendo que seu irmão e outros parentes e agentes de segurança ainda se encontram feridos ou em estado grave.

As informações sobre o caso vem da imprensa e ainda são precárias, mas ao que tudo indica Edson, que não tinha antecedentes criminais, fora diagnosticado  com esquizofrenia e teria sido internado quatro vezes, e em tempos recentes estava apresentando comportamento agressivo. Contudo, a imprensa também noticiou que, apesar do diagnóstico e das internações, Edson adquiriu suas armas cumprindo todas as exigências legais, ou seja, as registrou, não possui antecedentes e  comprovou aptidões técnicas e psicológicas, as primeiras a partir de cursos de tiro e também de tática e estratégia e as segundas pela emissão de laudos por profissionais credenciados da psicologia.

Em primeiro lugar as relações entre a doença mental e a periculosidade não são conclusivas e são oriundas das origens higienistas citadas acima, e, além disso, há muitas formas de esquizofrenia, e a mais “perigosa” seria a paranóide, onde há alucinações e delírios de perseguição, vozes imperativas e ameaçadoras. É possível que Edson tenha tido um episódio de surto paranóide, mas a ausência aparente de histórico não parece corroborar isso. 

Eu prefiro descartar a questão da doença mental individual nesse caso. E as razões são óbvias, tendo em vista a onda coletiva que acometeu o Brasil nos últimos anos, na qual, por duas vezes seguidas, mais de 45 por cento dos brasileiros foi às urnas e votou em um ex-militar cujo programa de governo era centrado na liberação total e irrestrita das armas de fogo à imagem e semelhança dos Estados Unidos e cujos decretos e resoluções levaram a explosão do comércio de armas e na proliferação dos CACs, clubes de homens machistas, misóginos, violentos e apaixonados por armas de fogo e pela cultura sobrevivencialista sob o eufemismo de serem caçadores e colecionadores de armas de fogo. 

Aqui chegamos ao que o filósofo Paul Preciado chama de “a morte da clínica”. É importante aqui entender como “clínica” todo o conjunto de tecnologias sociais e jurídicas de diagnostico e governo dos humanos, entre as quais a crimiminologia.

A ascensão do neoliberalismo representou um deslocamento sutil do eixo do poder do Estado para as corporações privadas. Os aparelhos de verificação das ciências criminológicas emergem de um predomínio do que a sociologia chama de modernidade, que é um casamento entre moral religiosa, ciência moderna e estado moderno, que conferiu poderes simbólicos aos operadores do direito, da medicina e da psicologia.

No mundo contemporâneo, em especial em países brutalmente colonizados e selvagemente capitalistas como o Brasil de Bolsonaro (cujas ideologias e práticas permanecem no país, assim como seu exército de fanáticos ), os poderes da ciência moderna entraram em queda vertiginosa e foram totalmente substituídos pela lógica do capital, e isso inclui aa gestão neoliberal da doença mental, do sofrimento psíquico, dos padrões ético-estéticos do corpo e dos aparelhos de verificação.

É mais do que evidente que a emergência do intenso comércio de armas e munições está atrelada a uma indústria de produção de laudos, que sempre tiveram uma cientificidade histórica precária que hoje são usados simplesmente como instrumentos burocráticos E tal instrumentalização é impulsionada pela privatização e precarização dos cursos superiores de medicina, direito e psicologia, a emergência de uma classe de médicos, psicólogos, advogados, policiais e juízes cuja formação é financiada pelas igrejas pentecostais ou por conglomerados ideológicos e educativos privados.

A realidade nua e crua está em todos os depoimentos das autoridades policiais que até agora depuseram na imprensa: Edson Crippa possuía todos os requisitos exigidos por lei para ter quatro armas de fogo, ter realizado treinamento tático, estocar munições e chacinar familiares e policiais.

Bem vindos ao Brasil “No mundo de 2020”.

Fábio Dal Molin. Psicólogo, psicanalista, professor da FURG e Pós-doutorando em Psicanálise, Clinica e Cultura da UFRGS