OPINIÃO

“Mudança segura”: o fim da democracia liberal para a esquerda xenomorfa e o horror do espaço – Por Fábio Dal Molin

A esquerda faz força para fazer concessões e alianças e mimetizar a direita e esta desenvolveu um sistema invencível para ganhar eleições pois as enxerga como guerra e oportunidade de negócios

Pôster da campanha de Maria de Rosário - Eleições 2024.Créditos: Domínio Público/Campanha Maria do Rosário
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Em 1979 o diretor Riddley Scott levou aos cinemas o primeiro filme da série “Alien”, que tratava dos horrores do espaço em um sistema totalmente opressor, onde a Terra é governada por uma “Companhia” privada e dá início a um processo de colonização de uma galáxia inóspita. A nave de carga “Nostromo”, tripulada por trabalhadores precários e explorados, em seu retorno a Terra, depara-se com um asteróide que contém artefatos alienígenas.

No processo de exploração, um dos tripulantes da Nostromo é atacado por uma estranha criatura que o inocula com um embrião que eclode dentro da nave e gera uma criatura horrenda, quase invulnerável e faminta, que devora aos poucos a tripulação da nave, restando apenas um andróide e a protagonista Ripley (Sigorney Weaver). Slavoj Zizek, em seu “Guia do pervertido sobre ideologia”, referindo-se ao clássico “Tubarão” na maioria dos filmes americanos, a criatura representava a condensação de todos os nossos medos: desemprego, imigrações, loucura (a palavra alien serve para alienado, alienígena, estrangeiro), violência, e á claro, o comunismo.

A criatura de Ridley Scott, cujo visual monstruoso foi criado pelo artista plástico  H.R.Giger , também chamada de xenomorfo, possui um sistema sofisticado de reprodução, que se divide em duas etapas: na primeira uma espécie de transportador inocula o embrião em um hospedeiro, ocorrendo uma mescla de DNA durante a gestação. O resultado do processo é uma criatura híbrida, cuja dominância ainda é do xenomorfo: apetite insaciável, velocidade, resistência a ambientes inóspitos e sangue ácido.

Após o piloto, mais três filmes foram realizados, “Aliens, o Resgate”, onde a heroína Ripley é resgatada e auxilia a “Companhia” a combater uma infestação dos aliens em uma colônia (é quando pela primeira vez aparecem as criaturas em sua coletividade),”Alien 3” que se passa em um planeta presídio e Ripley no fim é fecundada e se sacrifica lançando-se em uma forja para retornar como um clone híbrido com o xenomorfo em “Alien: ressurreição” uma película também hibrida entre o cinema comercial hollywoodiano e o cult francês, dirigida por Jean Pierre Jeunet, de “Amelie Poulain” e “Delicatessen”.

Agora, por que mesmo estou falando de Alien?

O primeiro turno das eleições municipais no Brasil representou uma aparente derrota acachapante da esquerda. O Partido dos Trabalhadores conseguiu 248 prefeituras enquanto o PSD e o PL, juntos, chegaram a 1500. A cidade de São Paulo terá um segundo turno com Ricardo Nunes  com ampla vantagem e correu o risco de eleger Pablo Marçal, uma variante do vírus bolsonarista para a qual não temos vacina.

Na minha cidade, Porto Alegre, cuja situação já analisei aqui com detalhes em outros textos, Sebastião Melo, o pior prefeito da história, responsável direto pela destruição da cidade, que, além de da tragédia da enchente, está suja, congestionada, com a economia deprimida pelo setor terciário inchado, transporte coletivo sucateado e precário, com uma ciclovia destruída e boa parte de suas árvores arrancadas por tempestades e pela verticalização selvagem por poucas centenas de votos não se elegeu NO PRIMEIRO TURNO. O PT, que já administrou a cidade por 16 anos e foi um exemplo de gestão para o mundo , hoje é um exemplo de como levar uma surra eleitoral humilhante.

Aqui na aldeia existem muitas explicações para a derrota. Uma delas é que o PT escolheu duas candidatas de muitíssimo valor e militância, porém uma com rejeição recorde (pela máquina sórdida dos gabinetes do ódio) e outra completamente desconhecida e iniciante na política, porque já esperava perder. Sebastião Melo é um político experiente e de ampla circulação na capital com o apelo populista do chapéu de palha. Já foi vereador que homenageou Che Guevara e foi vice-prefeito da gestão José Fortunatti (que hoje está retornando ao PT e virou uma espécie de Alckmin gaúcho) e, na eleição em que Marchezan Venceu, posicionou-se como candidato da esquerda. Logo em seguida, durante a pandemia, venceu a favorita Manuela D’Ávila surfando na onda bolsonarista.

Além disso, em Porto Alegre e no Rio Grande do Sul os políticos do espectro da direita não sofrem ataques sistemáticos da imprensa, por fazerem parte todos de um mesmo conglomerado de empreiteiras, empresas de transporte, comércio, cargos de confiança, incorporadoras. No dia 14 de outubro, em entrevista protocolar ao programa da RBS “Jornal do Almoço”, nenhum dos jornalistas questionou o prefeito sobre os escândalos de corrupção, sobre a sua aliança com Bolsonaro ou pela compra de Cloroquina durante a pandemia.

A imprensa gaúcha, assim como a Globo, jamais formulará a candidatos da direita perguntas do tipo “e o seu apoio a Venezuela”. Assim o protagonista da maior catástrofe urbana do século em uma cidade apresenta elevados índices de aprovação e está prestes a ser premiado com um segundo mandato. Com extremas dificuldades de formar uma frente ampla como a que elegeu Lula que lhe garantissem verbas do fundo eleitoral e apoio político por problemas históricos, é possível que o PT tenha feito a mesma aposta que os democratas americanos antes da senilidade de Biden: deixar Melo terminar seu último mandato e aproveitar o vácuo da direita e aí lançar uma candidatura viável para reconstruir Porto Alegre. Semelhante estratégia foi executada durante o governo Bolsonaro, quando o PT não fez grandes esforços pelo impeachment.

Sim, o que escrevi acima chega aos olhos do-a leitor-a como aquela criatura horrenda rompendo as vísceras e espalhando sangue por toda a tela do cinema.  É aqui que retomo meu argumento do Alien a partir do argumento gerador de polêmica de Vladimir Safatle agora sistematizado  em seu recente livro “Alfabeto das colisões “a esquerda brasileira morreu como esquerda […] [pois abandonou] as ideias de igualdade radical, soberania popular, autogestão da classe trabalhadora e de transformação estrutural da sociedade”. 

Essa análise do Safatle sobre a esquerda é certeira e imediatamente a associei ao  Alien. Ripley morre no terceiro filme da série no quarto ela ressurge como um clone Híbrido entre xenomorfo e humano. Em uma cena perguntam para ela: “soube que você venceu essa criatura, como conseguiu?” Ela responde : “eu morri”.

A maneira como a esquerda passou a ganhar eleições no Brasil é deixando de ser esquerda, e aqui podemos trazer mais um dos elementos causadores do paradoxal desastre eleitoral de Porto Alegre. Maria do Rosário, uma guerreira que encarou Bolsonaro face a face, assumiu nesta eleição uma postura conservadora, morna, sem combatividade e conformada. Na sua vez da entrevista protocolar na RBS, Maria foi perguntada sobre o fato de ser acusada de defender bandidos pelas fake news, enquanto na verdade é autora de vários projetos de lei que endurecem penas.

Ela disse orgulhar-se disso. Ora, como uma candidata da esquerda se orgulha de legislar em prol de um sistema penal historicamente excludente, racista, violento e falido? Um de seus slogans de campanha é “mudança segura”. Como assim? Porto Alegre precisa de um choque  de gestão, de políticas radicais  que batam de frente com empresários gananciosos e com a especulação imobiliária. Na cabeça do eleitor se é para ter mudança segura é melhor manter o tiozão do chapéu de palha que já tem a caneta e passa sua campanha inteira falando no gerúndio “estamos fazendo, estamos contratando, etc”.

Mas o que mais me irrita e entristece é a captura da campanha pela ética e a estética das redes sociais, em discursos alienados (olha aí o Alien) e formatados pela ditadura dos templates e pela necessidade prozaquiana do discurso otimista e solipsista, como os cards que ilustram esse texto, onde a campanha comemora vencer um debate ( o que significa isso?) ou um  empate técnico em uma pesquisa cujo resultado dera  6  pontos de diferença e que mostrou-se totalmente fora da realidade

 A situação política atual do Brasil e  do mundo é caótica e o modelo atual de democracia liberal está em franco declínio.  A esquerda faz força para fazer concessões e alianças e mimetizar a direita  e esta desenvolveu um sistema invencível para ganhar eleições pois as enxerga como guerra e oportunidade de negócios. 

Esse sistema de propagandas, partidos e votos é autocrático, ou iliberal  como dizem os cientistas  políticos.  Ele é o DNA do xenomorfo que vai, aos poucos minando outras espécies e transformando tudo em um imenso centrão, este sim o grande vitorioso da eleição.

 E a nós, da velha esquerda, resta o vácuo do espaço

*Fábio Dal Molin, psicólogo, psicanalista, professor da FURG e pós-doutorando do PPG em Psicanálise, Clínica e Cultura da UFRGS. Filiado ao PT. Contato @b.dalmolin

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.