Entrevista

Márcio Zonta: a Vale hoje é uma estatal chinesa

O controle da China não acontece através de compra de ações, mas por abocanhar 60% de todo o minério de ferro exportado pela Vale

Escrito em Opinião el
Completei 40 anos de trabalho como repórter de TV em 2020 e meio século de Jornalismo em 2022. Fui correspondente em Nova York por quase duas décadas, da TV Manchete, SBT e TV Globo. Colaborei com as redes CNN e CBC, dos Estados Unidos e Canadá. Colaborei com a Folha de S. Paulo e a rádio Jovem Pan. Fui o primeiro repórter a fazer uma entrevista improvisada com um líder da União Soviética, em Moscou, em 1988, e a conversa com Mikhail Gorbatchov no Kremlin foi notícia nas redes norte-americanas ABC, CBS e NBC, saiu no diário soviético Pravda e, apesar de transmitida pela TV Manchete, foi noticiada no Jornal Nacional, da concorrente TV Globo. Acompanhei de perto a Queda do Muro de Berlim, em 1989. Cobri os encontros dos líderes Ronald Reagan e Mikhail Gorbatchov que levaram ao fim da Guerra Fria -- na Islândia, na URSS e nos EUA. Cobri o prelúdio das invasões militares do Panamá e do Iraque. Participei de coberturas de Copas do Mundo e Olimpíadas (Itália, França, Estados Unidos, Brasil) e fiz 100 transmissões ao vivo de provas de automobilismo na Fórmula Indy. Dirigi 52 edições do Programa Nova África, da produtora Baboon Filmes, exibido na TV Brasil. Ao longo da carreira, passei por Quênia, Moçambique, África do Sul, Botsuana, Namíbia, Gana, Serra Leoa, Guiné Bissau, Cabo Verde e Marrocos -- no total, trabalhei em mais de 50 países de cinco continentes. No início dos anos 2000, em Nova York, criei o site Viomundo, do qual me afastei no final de 2021 para me dedicar a outros projetos. Sou co-autor de vários livros, dentre os quais se destaca O Lado Sujo do Futebol, finalista do Prêmio Jabuti. No Brasil, atuei no Globo Repórter, especialmente em viagens pela Amazônia, ganhei o Prêmio Embratel de 2005, investigando o uso fraudulento de tratamentos com células tronco, em série que foi ao ar no Jornal Nacional e o Prêmio Esso de Telejornalismo, em 2013, com a série As Crianças e a Tortura, exibida no Jornal da Record. Recebi dias menções honrosas no Prêmio Vladimir Herzog. Fui finalista do Prêmio Esso com o documentário "Luta na Terra de Makunaima", da TV Cultura, e do Prêmio Gabriel Garcia Marquez, com série investigativa sobre médicos que se viciam com drogas de hospitais.
Márcio Zonta: a Vale hoje é uma estatal chinesa
Canaã dos Carajás, uma das áreas de atuação da Vale. Agência Vale/Divulgação

Fundada em 1942, durante o governo de Getúlio Vargas e símbolo da soberania nacional, a Companhia Vale do Rio Doce, hoje Vale SA, se comporta hoje como se fosse uma “estatal chinesa”, afirmou Márcio Zonta, do Movimento pela Soberania Popular na Mineração, o MAM.

Privatizada em maio de 1997, no segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso, por apenas R$ 3,3 bilhões — uma fração do valor de suas reservas —, a Vale controla uma das maiores regiões minerais do planeta, na serra dos Carajás, no Pará.

Em tese, a empresa deveria ter enriquecido todo o seu entorno ao longo dos últimos 26 anos, mas não é o que se vê no Pará, nem em Minas Gerais, onde a Vale tem forte atuação.

Desde 1985, a Vale opera um trem que percorre 892 quilômetros entre Carajás e o porto da Ponta da Madeira, no Maranhão. São mais de 30 mil toneladas de minério por viagem.

No percurso, o trem passa bem ao lado da Penitenciária de Pedrinhas, em São Luís. É quando a riqueza brasileira, em escoamento, passa por um dos símbolos da miséria social da região.

Zonta disse que a Vale se transformou em uma “estatal chinesa” durante entrevista ao programa Fórum Sindical, conduzido pela historiadora Conceição Oliveira.

Em julho de 2023, 74% das ações da Vale estavam pulverizadas pelo planeta. A Previ tem 8,72% das ações, a Mitsui japonesa 6,31% e a BlackRock, maior gestora de investimentos do mundo, 6,01%.

O controle da China não acontece através de compra de ações, mas por abocanhar 60% de todo o minério de ferro exportado pela Vale. O aço produzido na China retorna depois ao Brasil, em parte, como componente de produtos manufaturados.

Como o objetivo principal da Vale é o lucro rápido, o ritmo de exploração de Carajás não atende aos interesses soberanos do Brasil, mas da China.

Carajás repete o modelo que se viu na serra do Navio, no Amapá, nos anos 40, quando uma gigantesca mina de manganês — componente essencial para fabricar ligas metálicas, como o próprio aço — serviu ao esforço de guerra dos Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial.

Na prática, as reservas de manganês eram controladas pela gigante estadunidense Bethlehem Steel, da Pensilvânia. O manganês praticamente se esgotou e o entorno da mina, no Amapá, continuou tão pobre quanto antes do empreendimento.

A reprise, em Carajás, se dá em boa parte por conta da Lei Kandir, aprovada em 1996 durante o governo de FHC, que isentou do imposto de circulação de mercadorias a exportação de produtos primários, como os minérios.

Em função disso, governantes do Pará calculam que durante a primeira década e meia de vigência da lei o Estado perdeu mais de R$ 15 bilhões em arrecadação — mesmo com a “compensação” da União determinada pelo STF.

Na entrevista, Márcio Zonta denuncia que a CEFEM — Compensação Financeira pela Exploração de Recursos Minerais —, paga pelas mineradoras às prefeituras, é gasta sem nenhum controle social.

O tributo foi criado levando em conta que os recursos são finitos. No papel, as prefeituras deveriam utilizá-lo para incentivar alternativas econômicas. Mas, não é o que acontece. 

Por isso, segundo Zonta, Itabira, em Minas Gerais, onde a Vale praticamente esgotou as reservas, se tornou a ex-Cidade do Ferro, com altas taxas de suicídio.

De acordo com o militante do MAM, a atividade minerária tem um padrão internacional de alta intensidade, responsável pelo adoecimento dos trabalhadores do setor.

Ele atribui a isso os altos índices de alcoolismo em cidades que vivem da mineração.

Márcio Zonta afirma que é uma triste ironia que trabalhadores terceirizados e quarteirizados retirem da terra os minérios que hoje são essenciais para fazer os produtos de maior valor agregado — de aparelhos da telefonia celular às naves espaciais.

O setor da mineração é altamente concentrado. As empresas investem pesado na espionagem de movimentos sociais que se opõem à destruição ambiental, diz Zonta.

No Brasil, a Vale privatizada foi responsável pelos dois maiores desastres ambientais, em Mariana e Brumadinho, que resultaram em ao menos 300 mortes e a destruição dos vales dos rios Doce e Paraopeba.

Apesar disso, a mineração continua beneficiária da Lei Kandir, mesmo na reforma tributária negociada recentemente pelo governo Lula.

Segundo Zonta, além de revogar a Lei Kandir, os movimentos sociais defendem o controle social sobre os investimento da Cefem e a retomada da soberania brasileira sobre os recursos minerais.

Não é uma tarefa fácil. De acordo com o militante, diante da crescente reação das populações locais contra os danos ambientais causados pela mineração, as empresas decidiram investir pesado nas relações com pastores e padres, muito influentes nas comunidades.

A estratégia foi discutida inclusive em um seminário realizado em Belo Horizonte.

Em artigo que publicou, Zonta cita o padre Dario Bossi, da Rede Igrejas e Mineração, que denunciou: “As empresas têm a esperança de que conquistando o favor de um pároco ou de um bispo conseguirão automaticamente garantir o apoio e reconhecimento de todos os fiéis daquela igreja em favor de seus projetos”.

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