SINAL DOS TEMPOS

Depois da morte de Pelé, Santos vai para Série B: fim de uma era? – Por Dennis de Oliveira

Além disso, a Sabesp é privatizada, a “vila mais famosa do mundo” vai ser transformada pela WTorre em uma “arena” e a cidade vermelha foi vandalizada

Pelé em época áurea do Santos.Créditos: Centro de Memória do Santos/Divulgação
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Os torcedores santistas mais fanáticos choraram duas vezes nestes últimos anos - a morte de Pelé, grande ídolo do futebol brasileiro e mundial e responsável pela transformação do Santos FC, na equipe mais lendária do esporte bretão – “o time que parou uma guerra” (alusão ao episódio ocorrido em 1969, quando uma guerra civil em Biafra, na Nigéria, teve um cessar-fogo para poder ver a equipe santista com Pelé jogar no país). E depois de rondar nos últimos anos a zona de rebaixamento, sempre escapando nas últimas rodadas reforçando o lema de que o “Santos é incaível”, finalmente a equipe praiana foi rebaixada para a Série B do Campeonato Brasileiro no próximo ano.

Haverá muitas explicações para esta tragédia que irão contaminar os comentários nas colunas esportivas. Eu, como torcedor santista desde criancinha, fascinado pela mágica de Pelé nos gramados mesmo no seu final de carreira nos anos 1970, digo que ser rebaixado em um ano não é o fim do mundo, pois muitas equipes se reergueram depois de situações como esta - o Palmeiras, por exemplo, hoje bicampeão brasileiro e inegavelmente a melhor equipe masculina de futebol do país atualmente. Mas o episódio do Santos sempre me faz pensar em vários fatores que sinalizam para um possível esgotamento de uma era que traz uma certa dose de melancolia.

O Santos representa uma era mágica e heroica do futebol brasileiro, responsável pela superação do “complexo de vira-latas” (termo cunhado por Nelson Rodrigues para designar o trauma brasileiro com a perda do título mundial de futebol em 1950) e, em um país do mito da democracia racial e da geleia geral do “mulatismo” e da “gente bronzeada que mostra o seu valor”, possibilitou que a figura brasileira de maior expressão internacional fosse um homem negro - Edson Arantes do Nascimento, o Pelé. Daí a lendária equipe que “parou uma guerra”, que encantou o mundo com o futebol-arte a ponto da sua cidade-natal ser “pequena” para recebê-lo e, assim, mandar a final do Mundial Interclubes de 1963 no estádio do Maracanã - aliás, palco também do milésimo gol de Pelé em 1969.

Ao mesmo tempo, a sua cidade, pequena para receber a final do Mundial de 1963, mas que sedia a “vila mais famosa do mundo” (o pequeno e tradicional estádio da Vila Belmiro), era também nos anos 1960 conhecida como “cidade vermelha” ou “pequena Moscou”. No mesmo ano de 1963, a classe trabalhadora santista fez 40 greves, tendo a categoria dos portuários como a mais organizada. Antes disto, a força dos militantes do Partido Comunista do Brasil (PCB) na cidade portuária mereceu registros em obras de Jorge Amado e do poeta chileno Pablo Neruda. Em 1968, Esmeraldo Tarquínio, opositor da ditadura militar recém-implantada, vence as eleições municipais, torna-se o primeiro negro a ser eleito prefeito, mas é cassado antes da posse pelos ditadores de plantão.

O último suspiro de “vermelhidão” de Santos foram as gestões petistas de Telma de Souza e David Capistrano entre 1989 e 1997, com reformas inovadoras nas políticas de saúde mental e de prevenção a contaminação pelo HIV. Santos, que era considerada a “capital mundial da Aids”, passou a ser referência em políticas de enfrentamento à contaminação pelo HIV.

Entretanto, as reformas neoliberais que entram com força no Brasil nos anos 1990 acabam por mudar este cenário. Por uma série de fatores, Santos deixa de ser uma cidade de trabalhadores, o desmonte do porto precariza e fragmenta a categoria e a cada ano, vê sua população reduzir, envelhecer e, ao mesmo tempo, a cidade sofre um forte processo de gentrificação. O impacto político é evidente: a direita hegemoniza fortemente a política local. 

E o Santos FC? Após a saída de Pelé dos gramados, a equipe de futebol se notabilizou por ser uma grande reveladora de novos jogadores. Depois da era Pelé, gerações de meninos da Vila encantaram o futebol brasileiro, como a de 1978 (com Nilton Batata, Juary e João Paulo, campeões paulistas naquele ano); de 2002/2004 (com Diego e Robinho, campeões brasileiros nestes anos) e, mais tarde, a geração de Neymar. Os novos ídolos - Robinho e Neymar - não estão apenas distantes tecnicamente do que foi Pelé. Também em aspectos pessoais. Robinho, condenado recentemente por estupro na Itália; Neymar, com atitudes muito criticadas e que prioriza mais a sua carreira de “popstar” e “garoto propaganda do que de futebolista. 

A equipe continua revelando bons jogadores, mas a instrumentalização mercadológica do futebol que chega ao ápice em tempos de capitalismo neoliberal, transforma a passagem ao clube em trampolim para ser “popstar” e ter uma carreira fora. Surgem meninos com até certo talento, mas com pouco comprometimento, vira e mexe surgem denúncias de indisciplina permeadas pelos desejos de pegar o avião e ir para uma equipe europeia. O futebol brasileiro hoje é um fornecedor de “insumos” para a grande indústria do futebol sediado na Europa - o “sistema mundo” capitalista no futebol. Mas parece que nas terras do Rei Pelé, a coisa se radicaliza. 

E radicaliza com dirigentes que dilapidam o patrimônio do clube, sucedidos por dirigentes que comandam com “cabeças de planilha” típicas de economista neoliberal, e o time fica como uma praia onde as pessoas vão passar um dia de sol, fazer uma tremenda bagunça e simplesmente ir embora tocar a vida em outras paragens. Uma lógica exatamente igual aos vândalos que, após a partida que decretou o rebaixamento, deixou um rastro de destruição na cidade.

No mesmo dia - 6 de dezembro de 2023 - era aprovada a privatização da Sabesp sob brutal repressão da Polícia Militar na Assembleia Legislativa. A mesma Sabesp criada em 1973, coincidentemente o mesmo ano em que o Santos teve o último título importante, o campeonato paulista, com o Rei Pelé. Cinquenta anos depois, a Sabesp é privatizada, Pelé já morreu, a “vila mais famosa do mundo” vai ser transformada pela WTorre em uma “arena” e o Santos foi para segunda divisão. E a cidade vermelha foi vandalizada.

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum.