Após quatro anos de debate, a população do Chile rejeitou a revisão da Constituição de 1980, uma herança do regime do ditador Augusto Pinochet, suavizada nos anos 2000. Foi a segunda vez que o povo chileno disse não para mudanças na Carta Magna.
Neste ano, a derrota para a extrema direita foi uma vitória inesperada para o presidente de esquerda, Gabriel Boric. Eleito em 2021 no calor das manifestações nas ruas contra seu antecessor de direita, Sebastián Piñera, ele deu início ao processo de mudança constitucional.
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Em 2022, Boric viu a rejeição de uma Constituição mais progressista. Agora, ele recebeu um alívio com a negação popular de uma segunda versão mais conservadora.
Boric é o mais jovem presidente chileno. Ele foi eleito com um discurso crítico ao modelo econômico neoliberal pós-ditadura de Pinochet, responsável pelo endividamento das classes média e baixa com despesas de educação, saúde e previdência privada.
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Chile, berço do neoliberalismo
O Chile que Boric governa foi o berçário do neoliberalismo anos antes de "virar moda" e ser implementado nos países ricos.
Em 11 de setembro de 1973, o golpe militar no Chile assassina o presidente socialista Salvador Allende e abre caminho para o desfile de maldades contra os pobres.
A ditadura já iniciou o regime com um plano econômico pré-elaborado, conhecido como "El ladrillo". Este documento, secretamente preparado por economistas opositores ao governo da Unidade Popular, delineava uma série de reformas econômicas radicais.
Para implementar os arrochos, Pinochet teve a colaboração estreita de um grupo de economistas chilenos, principalmente os formados na Universidade de Chicago, apelidados de "Chicago Boys".
Mais de dez anos depois que surgiria o pacote de maldades do Consenso de Washington, em 1989, imposto aos países pobres pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial e o Departamento do Tesouro dos Estados Unidos.
As 10 medidas de austeridade desconsideram os impactos sociais, a redução da desigualdade e a sustentabilidade. As políticas do Consenso de Washington focavam principalmente na liberalização econômica e incluíam:
- Disciplina Fiscal: Reduzir o déficit do governo para evitar a inflação.
- Corte de Gasto Público: Reduzir os subsídios e aumentar os gastos em áreas como educação, saúde e infraestrutura.
- Reforma Tributária: Ampliar a base tributária e reduzir as taxas marginais de impostos.
- Liberalização Financeira: Eliminar restrições ao ingresso de capital estrangeiro e liberalizar os sistemas bancários internos.
- Taxa de Câmbio Competitiva: Manter uma taxa de câmbio que facilitasse o crescimento das exportações.
- Liberalização do Comércio: Reduzir barreiras ao comércio, como tarifas e quotas.
- Investimento Estrangeiro Direto: Encorajar o investimento estrangeiro direto.
- Privatização: Privatizar empresas estatais.
- Desregulamentação: Reduzir a regulação excessiva que impede a entrada de empresas no mercado.
- Propriedade dos Direitos Legais: Garantir a proteção legal dos direitos de propriedade.
Chicago boys
Os "Chicago Boys" é como é chamado o grupo de economistas que desempenharam um papel crucial na formulação das políticas econômicas durante a ditadura do general Augusto Pinochet.
Conhecidos por serem precursores do Neoliberalismo no Chile, implementaram reformas que precederam em quase uma década as políticas similares adotadas, a partir do final de década de 1980, por Margaret Thatcher no Reino Unido, Ronald Reagan nos EUA e Helmut Kohl na Alemanha.
Esses economistas foram os artífices do que foi chamado de "Milagre do Chile", um termo cunhado pelo economista liberal Milton Friedman para descrever o "sucesso" econômico do país sob suas políticas.
O rótulo de "Chicago Boy", no Brasil, acabou englobando economistas formados na Universidade de Chicago, independentemente de seu envolvimento com o contexto chileno.
Entre os exemplos estão Paulo Guedes, ex-ministro da Economia, que foi professor na Universidade do Chile durante o regime de Pinochet, e Joaquim Levy, ex-ministro da Fazenda.
Neoliberalismo na moda
Para o capitalismo, um bom piloto de testes para novas formas de gestão é a indústria da moda: baixa demanda por inovações tecnológicas e mão de obra barata e majoritariamente feminina.
Com a globalização turbinada pelo neoliberalismo, o fast fashion vestiu como uma luva. A moda entra no modo de produção e de consumo acelerado de produtos descartáveis em escala global.
As marcas se financeirizam, abrem capital e se espalham por todo o planeta com roupas baratas e de baixa qualidade. O lucro do 'mundo da moda', um colosso global, não para de crescer.
Em 1990, os Tigres Asiáticos (Coreia do Sul, Singapura e China com as regiões de Hong Kong e Taiwan, Bangladesh) ofereciam indústrias de confecções e mão de obra barata. Para lá foi o grosso da indústria da moda com produção em escala.
Embora lucrativo para grandes empresas da moda, o fast fashion é uma prática cruel com trabalhadores e meio ambiente. Há muitas violências contra a vida de pessoas e do planeta em suas práticas.
Como o desabamento criminoso do Rana Plaza, em Daka, Bangladesh (2013), que deflagrou o movimento Fashion Revolution.
As relações trabalhistas precarizadas e normalizadas para a produção de jeans em Toritama (PE).
Ou a prática de trabalho análogo à escravidão em oficinas de costura escondidas em subsolos de São Paulo (SP).
Os rios mundo afora são tingidos e envenenados com as cores que colorem roupas. Os solos são mortos por uso indiscriminado de venenos para cultivo do algodão.
As florestas nativas são transformadas em tecidos e resíduos têxteis de todo tipo são descartados em lixões por todo o planeta.
Lixão de roupas visto do céu
Entre os maiores desses lixões mundo afora está o do Deserto do Atacama, no Chile. É uma das mazelas desfiladas pelo neoliberalismo e sua cria, o fast fashion.
A montanha de têxteis descartados pode ser vista do espaço. Está situada no norte do país, próximo à cidade de Iquique, que fica a 1.800 km da capital chilena, Santiago.
A maior parte desse aterro fica nas cercanias de Alto Hospicio, uma comunidade com altos níveis de pobreza e vulnerabilidade.
Caminhões carregados com fardos de roupa usada entram e saem da Zona Franca de Iquique, mais conhecida como Zofri. O lugar, considerado um paraíso de consumo, abriga um imenso parque industrial onde operam mais de mil empresas que comercializam produtos isentos de impostos.
As peças abandonadas em pleno deserto são descartadas pelos Estados Unidos, pela Europa e Ásia. Essas roupas são enviadas ao país sul-americano para revenda. Das 59 mil toneladas importadas todos os anos, grande parte (algo como 40 mil toneladas) não é vendida e acaba no lixo. Ou seja, aproveita-se apenas 19 mil toneladas.
Não é só para o Chile que vão as roupas usadas. Os países ricos do norte global usam os países pobres do sul global como lixão de roupas que não querem mais. Até 40% das roupas usadas e exportadas para países da África Oriental, como Quênia e Tanzânia, não têm valor de mercado e nada mais são do que resíduos têxteis.
A ditadura sanguinária de Pinochet fez mais de 40 mil vítimas, entre elas 3.225 mortos ou desaparecidos. O modelo de gestão capitalista que o general ajudou a forjar, o neoliberalismo, transformou em tendência na moda a necropolítica.