Os países ricos do norte global usam os países pobres do sul global como lixão de roupas que não querem mais. Até 40% das roupas usadas e exportadas para países da África Oriental, como Quênia e Tanzânia, não têm valor de mercado e nada mais são do que resíduos têxteis.
Os dados são de um estudo divulgado pelo Greenpeace Alemanha no dia 22 de abril. O estudo culpa a quantidade crescente de fast fashion de má qualidade. Os pesquisadores visitaram dois dos cinco maiores importadores líquidos globais de roupas usadas, Quênia e Tanzânia. Eles descobriram que grande parte das roupas exportadas para lá do norte global é de tão baixa qualidade que vai direto para o lixão.
Em nenhum lugar o fracasso do modelo de negócios linear fast fashion é mais visível do que nos países onde muitas dessas roupas baratas acabam quando suas curtas vidas terminam: em enormes lixões, queimados em fogueiras, ao longo dos leitos dos rios e levados para o mar, com graves consequências para as pessoas e para o planeta.
O relatório intitulado 'Poisoned Gifts - from donations to the dumpsite: textiles waste disguised as second-hand clothes exported to East Africa' ('Presentes Envenenados - das doações ao lixão: resíduos têxteis disfarçados como roupas de segunda mão exportadas para a África Oriental', em tradução livre) revela o papel desempenhado pela roupa usada importada chamada “Mitumba” na África Oriental, e quanto ela é de tão baixa qualidade que vai direto para o lixão.
O levantamento da ONG ambientalista mostra como os resíduos têxteis são muitas vezes “disfarçados” como roupas de segunda mão e exportados do norte para o sul global, para evitar a responsabilidade e os custos de lidar com o problema das roupas descartáveis.
Enquanto os países do norte global afirmam que exportam roupas usadas e até novas 'superproduzidas' e as classificam como "reutilizadas", na verdade quase metade dessas roupas acaba em lixões, rios ou são queimadas assim que os pacotes com o "presente" são abertos.
A indústria da moda é responsável por até 10% da emissões de gases de efeito estufa (GEE) e é uma das principais causas de poluição em todo o mundo, com mais de 80% de sua cadeia de suprimentos gerando impactos sobre o meio ambiente no sul global, onde ficam os países em que a maioria das roupas é fabricada.
Há ainda grandes quantidades de têxteis poluentes - resíduos dessas fábricas de moda rápida - que cada vez mais são despejados nos países do sul global.
Em razão desses enormes impactos negativos sobre o meio ambiente, a “circularidade” tornou-se uma tendência entre as marcas de moda globais, que tentam limpar a própria imagem.
Mas essa circularidade é um conto de fadas e é praticamente inexistente na indústria da moda, como aponta o relatório 'State of Fashion', de 2021, elaborado pela consultoria McKinsey. Enquanto menos de 1% das roupas são recicladas em roupas novas, os volumes de produção de vestuário crescem 2,7% anualmente. A cada segundo, um caminhão cheio de roupas é queimado ou enviado para aterro.
Da doação ao lixão: a viagem de roupas usadas
Não existe obrigação em relatar o que acontece para roupas usadas e resíduos têxteis em qualquer lugar do mundo. As informações reunidas pelo Greenpeace sobre esse fenômeno são baseadas em poucos dados fornecidos de forma voluntária.
O documento aponta que apenas na Alemanha, cerca de 1 milhão de toneladas de roupas usadas são recolhidas todos os anos. Desde meados da década de 1990, o volume de roupas arrecadadas a cada ano cresceu 20% e segue crescendo junto com a velocidade cada vez maior do fast fashion.
Apenas uma pequena quantidade de roupas usadas é realmente revendida no país onde foram coletadas: cerca de 10% a 30% no Reino Unido e proporções semelhantes nos EUA e Canadá. A maior parte das peças de roupas usadas descartadas por esses países ricos são exportadas.
Por exemplo, das 11 mil toneladas de roupas doadas à Oxfam no Reino Unido a cada ano, 3 mil toneladas (27%) são vendidas nas lojas da organização em solo britânico. Das outras 8 mil toneladas, 1 mil toneladas são descartadas e 5 mil e 600 toneladas (metade do que foi doado) vai para o exterior, ou para a Europa Oriental, para países do Oriente ou para a África Ocidental.
Estima-se que mais de 70% de todas as roupas reutilizadas pelos países do norte global vão para o exterior. Esse montante se junta a uma montanha global de roupas usadas que movimenta um comércio em que bilhões de peças velhas são compradas e vendidas em todo o mundo todos os anos.
O comércio global de roupas de segunda mão cresceu dez vezes entre 1990 e 2004, atingindo um valor de cerca de US$ 1 bilhão, aponta a Oxfam. O valor de mercado de roupas de segunda mão foi de US$ 36 bilhões em 2021, com projeção de crescer para US$ 77 bilhões até 2025, indicam dados do Statista.
De acordo com o Observatory of Economic Complexity (OEC), em 2020, os maiores exportadores líquidos de roupas usadas foram os Estados Unidos (US$ 585 milhões), China (US$ 366 milhões), Reino Unido (US$ 272 milhões), Alemanha (US$ 258 milhões)12 e Coreia do Sul (US$ 256 milhões).
Na outra ponta, os maiores importadores líquidos foram Gana (US$ 181 milhões), Ucrânia (US$ 154 milhões), Nigéria (US$ 123 milhões), Quênia (US$ 122 milhões) e Tanzânia (US$ 102 milhões).
Antes de serem exportadas, as roupas usadas costumam ser vendidas a um classificador ou reciclador de roupas comerciais. A partir de uma perspectiva econômica, apenas metade dessas roupas ainda podem ser potencialmente reutilizadas como vestuário. O restante acaba sendo reciclada (por exemplo, usada para trapos, isolamento, matéria-prima para outras indústrias) ou jogadas fora.
Os dados disponíveis variam dependendo do reciclador. Entre 45% e 60% é exportado para reutilização, cerca de 25% e 50% são reciclados e oficialmente 5% a 10% são resíduos.
Só que esses dados não consideram que algumas das roupas que são exportadas para “reutilização” também vão acabar como resíduos, porque não têm valor de mercado no país que os importa. Ou as peças não são adequadas (tamanhos que não se encaixam ou não são úteis devido ao clima local), sua qualidade é muito ruim, ou são estragadas ou sujas e exportá-las é apenas uma maneira barata de se livrar delas.
Não há dados oficiais disponíveis sobre a quantidade de roupas de segunda mão exportadas que são, na verdade, resíduos. Como um exemplo, em Gana, cerca de 15 milhões de roupas usadas chegam à capital Accra, ao mercado local chamado Kamanto, todas as semanas do Reino Unido, Europa, América do Norte e Austrália, inundando o amplo mercado de roupas da cidade.
Estima-se que 40% das peças que chegam à capital ganense são de tão baixa qualidade que são consideradas sem valor logo na chegada e acabam despejadas em um aterro sanitário. Ou seja, cerca de 6 milhões de peças de vestuário saem do mercado local de roupas usadas direto para o lixo toda semana.
Além desse assombroso volume de resíduos têxteis disfarçados de 'roupas usadas' que países ricos exportam para países pobres, tem ainda a questão da superprodução. Uma quantidade enorme e desconhecida de roupas que são destruídas ou despejadas antes mesmo de serem vendidas para consumidores do norte global.
Em 2021, um relatório sobre a destruição de bens não vendidos na União Europeia apontou que 83% desses itens são roupas. O documento elaborado pela EEB - a maior rede de organizações da sociedade civil da Europa, que reúne cerca de 170 entidades - em parceria com a Ökopol - organização que elabora estratégias ambientais-, pede mudanças na legislação para que essa prática seja proibida.
Mitumba, fardo do norte global despejado em países da África
As roupas usadas e de segunda mão exportadas para África são conhecidas localmente como "Mitumba", uma palavra Kiswahili que significa fardo ou pacote, porque normalmente é vendido para varejistas em fardos.
Mitumba também refere-se à exportação de roupas de segunda mão que foram doadas por consumidores nos países ocidentais e “recolhidas e embaladas por empresas de reciclagem têxtil”.
O termo Mitumba começou a ser usado na década de 1980. No passado, as roupas usadas chamavam-se “Kafa Ulaya”, que significa “roupas de alguém que morreu na Europa”.
Mitumba também pode incluir roupas novas que foram superproduzidas pela indústria fast fashion, mas que ficaram encalhadas. Ou devido às mudanças aceleradas e sem precedentes das tendências da moda. Ou pelo impacto causado pela pandemia da Covid-19 neste setor, que ficou sem mercado para contêineres cheios de roupas novas durante os primeiros estágios da crise sanitária.
Desde meados dos anos 2000, a duplicação do número de peças de vestuário adquiridos pelo consumidor médio no Ocidente, de acordo com dados da Global Fashion Agenda, levou ao aumento volumes de roupas em segunda mão que acabam em mercados em África.
No Brasil, indústria têxtil e de confecção ignora Política Nacional de Resíduos Sólidos
A Lei 12.305/2010 institui a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) e se aplica a pessoas físicas ou jurídicas, de direito público ou privado, responsáveis, direta ou indiretamente, pela geração de resíduos sólidos - o que inclui os têxteis - e as que desenvolvam ações relacionadas à gestão integrada ou ao gerenciamento de resíduos sólidos.
No entanto, o setor têxtil e de confecção brasileiro ignora solenemente a legislação que está em vigor há mais de uma década. Por essa razão, o movimento Fashion Revolution Brasil defende a regulamentação, em forma de lei, das responsabilidades específicas da indústria têxtil e de confecção na PNRS quanto aos resíduos têxteis.
Essa demanda é uma das pautas da 'Agenda Legislativa da Moda Ética', lançada neste domingo (24) em live transmitida pela TV Fórum. A lei brasileira não especifica em nenhum trecho as responsabilidades do ecossistema produtivo da indústria têxtil e de confecção. Essa lacuna precisa ser preenchida com urgência.
Estima-se que a indústria têxtil e de confecção brasileira produz mais de 175 mil toneladas de resíduos anualmente. Esse volume de roupas alimenta a emergência climática e turbina a crise social que enfrentamos. Por isso, é urgente interromper esse ciclo de desperdício e destruição.
*Iara Vidal (@iaravidal) é representante do Fashion Revolution em Brasília (DF) e pesquisadora independente dos encontros da moda com a política.