No Deserto do Atacama, no Chile, um lixão de roupas pode ser visto do espaço. A montanha de têxteis descartados está situada no norte do país, próximo à cidade de Iquique, que fica a 1.800 km da capital chilena, Santiago. A maior parte desse aterro fica nas cercanias de Alto Hospicio, uma comunidade com altos níveis de pobreza e vulnerabilidade.
Caminhões carregados com fardos de roupa usada entram e saem da Zona Franca de Iquique, mais conhecida como Zofri. O lugar, considerado um paraíso de consumo, abriga um imenso parque industrial onde operam mais de mil empresas que comercializam produtos isentos de impostos.
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O local estratégico no norte do Chile - a poucos quilômetros do porto do Iquique - transforma a área em um importante centro comercial para outros países latino-americanos como Argentina, Brasil, Peru e Bolívia. Lá funcionam pelo menos 50 importadoras que todos os dias recebem dezenas de toneladas de peças de segunda mão que depois são distribuídas por todo o Chile para revenda.
O negócio é enorme e legal e, segundo dados do Observatório de Complexidade Econômica (OEC), uma plataforma que registra diversas atividades econômicas pelo mundo, o Chile é o maior importador de roupa usada na América do Sul e recebe 90% desse tipo de mercadoria na região.
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Do Norte para o Sul global
As peças abandonadas em pleno deserto são descartadas pelos Estados Unidos, pela Europa e Ásia. Essas roupas são enviadas ao país sul-americano para revenda. Das 59 mil toneladas importadas todos os anos, grande parte (algo como 40 mil toneladas) não é vendida e acaba no lixo.
A imensa pilha de roupas descartadas está presente no Atacama há 15 anos e chama a atenção para a problemática da indústria têxtil. A contaminação na região é alarmante devido à grande quantidade de poliéster - tipo de plástico - presente nos tecidos das peças, que levam cerca de 200 anos para se decompor.
Não é só para o Chile que vão as roupas usadas. Os países ricos do norte global usam os países pobres do sul global como lixão de roupas que não querem mais. Até 40% das roupas usadas e exportadas para países da África Oriental, como Quênia e Tanzânia, não têm valor de mercado e nada mais são do que resíduos têxteis.
Lixão visto do espaço
Com o intuito de revelar a verdadeira escala desse problema, a empresa SkyFi divulgou uma imagem de alta resolução que compara o "lixão" de roupas com o tamanho dos prédios da cidade vizinha. A empresa alertou que o tamanho da pilha e a poluição que ela causa ao meio ambiente já são visíveis do espaço, evidenciando a necessidade de mudanças na indústria da moda.
Nos últimos anos, as areias do Atacama se transformaram em um verdadeiro depósito de roupas a céu aberto. Segundo a agência de notícias Associated Press, a maioria das peças acumuladas são novas. Os dados indicam uma rota: após serem produzidas na Ásia, os produtos são enviados para a Europa e Estados Unidos.
Posteriormente, grande parte das roupas não vendidas são adquiridas por vendedores de segunda mão no norte do Chile, que pretendem revendê-las para países latino-americanos. No entanto, aquelas que não são compradas têm como destino final o aterro no Atacama.Há cerca de 15 anos, o Deserto do Atacama continua sendo inundado por toneladas de resíduos têxteis.
Fast fashion
Parte dessas roupas descartadas em solo chileno vem do mercado global de moda rápida (fast fashion), que deve crescer de US$ 106,42 bilhões em 2022 para US$ 122,98 bilhões em 2023. É o que aponta o relatório da Business Research.
O fast fashion nasceu na década de 1980 e é fruto das oportunidades oferecidas pela globalização e seu núcleo ideológico e político: o neoliberalismo. A moda rápida é filha do período em que uma releitura do liberalismo clássico conquistava legitimidade no cenário político econômico internacional. Esse modelo de gestão capitalista adota um modo de produção e de consumo em que os produtos são fabricados, consumidos e descartados rapidamente em escala global.
Embora lucrativo para grandes empresas da moda e difundido como estratégia de desenvolvimento pelas economias neoliberais, o fast fashion é uma prática cruel com trabalhadores e meio ambiente.
Há muitas violências contra a vida de pessoas e do planeta em suas práticas, como o desabamento criminoso do Rana Plaza, em Daka, Bangladesh (2013), que deflagrou o movimento Fashion Revolution (leia mais abaixo); as relações trabalhistas precarizadas e normalizadas para a produção de jeans em Toritama (PE); ou a prática de trabalho análogo à escravidão em oficinas de costura escondidas em subsolos de São Paulo (SP).
Os rios mundo afora são tingidos e envenenados com as cores que colorem roupas, os solos são mortos por uso indiscriminado de venenos para cultivo do algodão, as florestas nativas são transformadas em tecidos e resíduos têxteis de todo tipo são descartados em lixões por todo o planeta, entre eles o Deserto do Atacama.
Lixão de roupas no Brasil
Segundo a Associação Brasileira da Indústria Têxtil (Abit), somente no Brasil, a indústria da moda gera anualmente 175 mil toneladas de resíduos têxteis. Poucas peças são recicladas de forma adequada, muitas delas acabam sendo descartadas até mesmo no oceano.
Uma das facetas desse problema no Brasil são as lacunas da Lei 12.305/2010 que institui a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) e que está em vigor há mais de uma década no Brasil, mas que não especifica com clareza as responsabilidades do setor têxtil e de confecção na gestão de resíduos desse segmento.
Por essa razão, a PNRS é um dos itens da Agenda Legislativa da Moda Ética do movimento Fashion Revolution Brasil, que defende a regulamentação, em forma de lei, das responsabilidades específicas da indústria têxtil e de confecção nessa legislação quanto aos resíduos têxteis.
Agenda Legislativa da Moda Ética
Além da PNRS, a agenda legislativa do Fashion Revolution trata de outros temas diretamente relacionados à cadeia produtiva da moda. Como o pacote do veneno, o PL 6299/2002, ao qual o movimento é contrário e se juntou à campanha "Moda Sem Veneno" ao lado do Modefica e Rio Ethical Fashion. A matéria aguarda apreciação pelo Senado Federal e propõe flexibilizar o processo de aprovação de novos agrotóxicos, mudar critérios de avaliação, banir o termo “agrotóxico” e encontrar brechas para liberar produtos que a atual legislação proíbe.
Outro item da agenda do Fashion Revolution Brasil é o PL 399/2015, que tramita na Câmara dos Deputados e trata do cultivo, processamento, pesquisa, produção e comercialização de produtos à base de cannabis industrial e medicinal. O movimento no Brasil apoia o uso industrial do cânhamo e se aliou à Associação Nacional do Cânhamo Industrial (ANC) para aprovação do projeto que regulamenta o uso dessa matéria-prima, entre outros usos, pela indústria têxtil e de confecção.
Sobre o Fashion Revolution
O Fashion Revolution foi criado após um conselho global de profissionais da moda se sensibilizar com o desabamento do edifício Rana Plaza em Daka, Bangladesh, que causou a morte de mais de mil trabalhadores da indústria de confecção e deixou mais de 2.500 feridos. A tragédia aconteceu há dez anos, no dia 24 de abril de 2013, e as vítimas trabalhavam para marcas globais, em condições análogas à escravidão.
A campanha #QuemFezMinhasRoupas surgiu para aumentar a conscientização sobre o verdadeiro custo da moda e seu impacto no mundo, em todas as fases do processo de produção e consumo. Realizado inicialmente no dia 24 de abril, o Fashion Revolution Day ganhou força e tornou-se a Semana Fashion Revolution, que conta com atividades promovidas por núcleos voluntários, em mais de cem países.