As últimas sete décadas presenciaram um boom extraordinário do crescimento da população evangélica no Brasil, um fenômeno sem precedentes. Para se ter uma ideia dessa expansão, entre 1940 e 2010, este grupo religioso saltou de 2,7% para 22,2% dos brasileiros e brasileiras.
Esse aumento pode ser ainda maior. A expectativa é de que os dados do Censo 2022, que ainda serão detalhados, apontem uma representação evangélica de mais de um terço da população brasileira, acima de 30% da população.
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Há projeções que antecipam que o número de evangélicos vai ultrapassar o de católicos em 2032. Essa explosão evangélica impulsionou todas as correntes, incluindo pentecostais, neopentecostais e históricas (ou missionárias).
A pesquisa Global Religion 2023, conduzida pelo instituto Ipsos em 26 países e concluída em maio deste ano, mostra que os evangélicos já são a maioria entre os jovens (até 30 anos) no Brasil, com 30% da população, contra 26% dos católicos. Esse crescimento é impulsionado principalmente pela urbanização do país, a ausência do Estado em algumas regiões e a maior agilidade em comparação com o catolicismo.
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A fé que inspira roupas
Na esteira desse crescimento impressionante surge um novo nicho da moda: a evangélica, também chamada de comportada. A fé pode até sofrer transformações, mas a capacidade do capitalismo de se apropriar do espírito do tempo, produzir coisas, embalá-las e vendê-las segue sem mudanças.
No caso da moda, essa característica capitalista é realmente impressionante. Moda vegana, sustentável, consciente e por aí vai. Não falha nunca.
A moda evangélica bebeu da fonte de outro nicho, o da moda modesta, associado a consumidoras muçulmanas. Ambos guardam características em comum: saias longas, modelagens amplas, falta de decotes ou recato, e sobreposições.
A ideia geral desse segmento da indústria da moda é um estilo mais conservador e que valoriza peças que cobrem o corpo.
Mercado em expansão
Faltam dados oficiais para mostrar o quanto e em qual ritmo cresce esse nicho da moda no Brasil. Até porque há uma miscelânea de nomenclaturas: evangélica, comportada, modesta, jovem senhora, executiva ou nenhum deles.
A Associação de Empresas e Profissionais Evangélicos do Brasil (Abrepe) estima que o mercado consumidor evangélico represente R$ 21,5 bilhões/ano no mercado varejista em geral – que movimenta R$ 1,4 trilhão/ano. Pesquisas do Sebrae mostram que 10% do mercado consumidor de moda evangélica é formado também por mulheres não evangélicas.
Uma das raras pesquisas sobre moda evangélica foi conduzida em conjunto por quatro alunos dos programas do Mestrado Profissional em Comportamento do Consumidor (MPCC) e do Programa de Pós-Graduação em Administração (PPGA), da ESPM de São Paulo.
Sob o título Em um Mundo com Tantas Opções, por que Mulheres Evangélicas Optam pela Restritiva Moda Comportada? os autores do levantamento, feito em 2020, entrevistaram mulheres da comunidade da Assembleia de Deus de Embu das Artes (SP). Em razão desse recorte tão específico, os resultados da pesquisa não demonstram a diversidade desse público.
O estudo mostrou que, para as mulheres ouvidas, a moda comportada não é uma restrição e que o efeito cultural faz com o que elas não entendam essa escolha como restrição e criem cada vez mais possibilidades de diversificação dentro dos padrões de “usos e costumes” aceitos pelo grupo.
Outra conclusão da pesquisa é que, para as entrevistadas, a roupa não é uma imposição. Essas mulheres se identificam com a religião, têm senso de pertencimento e motivação para aderir aos usos e costumes da comunidade dessa igreja.
Foi mostrado ainda que, para o grupo ouvido, há uma separação clara entre roupa do dia a dia e roupa de ir à igreja. A calça jeans, por exemplo, foi um item de muita discussão na pesquisa. As consumidoras mais jovens apontam não ver problema em seu uso nos cultos – no entanto, as mais velhas repreenderam essa prática.
Fé de várias formas
Outra dificuldade para mensurar o tamanho do mercado de moda evangélica é que cada vertente religiosa tem as próprias regras para vestimentas.
Os evangélicos consideram a Bíblia a maior autoridade religiosa, defendem o direito de todas as pessoas interpretarem o que consideram Livro Sagrado sem intermediários e condenam a adoração de santos ou imagens, por considerá-la proibida pela mensagem bíblica.
Essas convicções resultaram em uma fragmentação das igrejas evangélicas. Afinal, qualquer pessoa pode fundar seu movimento, que não terá qualquer relação de hierarquia com os já existentes. Não há autoridade central, como o Papa da Igreja Católica Romana.
As igrejas evangélicas são divididas em três vertentes principais: históricos (também chamados missionários), pentecostais e neopentecostais.
- Históricos: Originários do protestantismo surgido com a Reforma do século 16, fundaram igrejas no Brasil no século passado. Adotam estrutura mais centralizada e hierarquizada (o que as aproxima do catolicismo).
No Brasil, as principais igrejas dessa vertente são Adventista, Luterana, Anglicana, Batista, Metodista, Menonita e Presbiteriana.
- Pentecostais: O nome vem do dia de Pentecostes, quando, de acordo com a Bíblia, o Espírito Santo se revelou aos apóstolos, 50 dias depois da ressurreição de Jesus Cristo. Surgiram no Brasil a partir de 1910. Dão ênfase a manifestações do Espírito Santo, principalmente à glossolalia (falar em línguas desconhecidas) e, a partir dos anos 50, às curas divinas. Realizam cultos baseados na emoção, mais informais que os das igrejas tradicionais.
Com maior capilaridade pelo país, com templos em cidades pequenas e isoladas, elas, com frequência, assumem tarefas de alfabetização, alimentação e assistência em locais com alta fragilidade social, como presídios, favelas e aldeias indígenas.
No Brasil, as principais igrejas dessa vertente são Assembleia de Deus, Congregação Cristã no Brasil, Deus é Amor, Igreja do Evangelho.
- Neopentecostais: Englobam igrejas criadas a partir da década de 70. Destacam o dom do Espírito Santo que leva à cura divina e o exorcismo (que chamam de libertação). A guerra entre Deus e o diabo ganha tons dramáticos. Em geral todos os movimentos que contrariam sua doutrina, como a umbanda, são considerados manifestações demoníacas.
São mais concentradas nos centros urbanos e priorizam templos em locais de grande circulação. Embora também tenham suas atividades sociais, elas investem na “teologia da prosperidade”, uma pregação focada na promessa de melhoria da condição financeira dos fiéis.
Aqui no Brasil, as principais igrejas dessa vertente são Igreja Universal do Reino de Deus, Renascer em Cristo, Igreja Internacional da Graça de Deus, Sara Nossa Terra e Igreja Mundial do Poder de Deus.
Códigos de vestimenta
Na vertente evangélica histórica ou missionária, igrejas como Congregação Cristã no Brasil (CCB – a igreja do véu), Igreja Adventista do Sétimo Dia, Deus é Amor, algumas Assembleias de Deus, Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias (Mórmons), Testemunha de Jeová e outras, orientam as mulheres a usarem vestidos ou saias, blusas com mangas longas ou médias, cabelos longos, poucos acessórios ou joias – ou nada. Nessas igrejas, as calças são permitidas basicamente para frequentarem escolas ou para trabalhar.
Já nos templos pentecostais e neopentecostais, as vestimentas das mulheres não obedecem muito ao rigor e não exigem cabelos longos e vestidos e saias abaixo dos joelhos. Nessas igrejas, a mulher pode usar quaisquer tipos de joias, maquiagem, piercing e até tatuagens.
Essas fiéis de igrejas mais modernas são o alvo da moda evangélica. Esse filão começou a crescer na década de 1980 até se transformar no fenômeno que é hoje.
Consultoria de estilo para evangélicas
Sara Beatriz Pinheiro Santos, 42, é costureira desde os 10 anos de idade e foi criada no meio evangélico. Ela faz roupas sob medida e atende muitas evangélicas, a começar pela mãe dela.
Nesse nicho de mercado de moda, ela explica que é preciso adaptar a peça de acordo com a doutrina seguida pela cliente. Ela também chama a atenção para uma questão recorrente: mulheres que se arrumam para ir ao culto como se fossem para uma festa. "Como se o seu Deus não merecesse o seu melhor", defende.
Mas ela ressalta que essa opção de estar ou não arrumada vai depender da doutrina de cada igreja.
Existem igrejas em que não é permitida a vaidade, nem uma modelagem ajustada. Como a Igreja Universal do Reino de Deus e a Deus é Amor. Já na Adventista as são roupas geralmente mais elegantes e a Batista é mais livre.
Opções diversas
A marca carioca Zinzane não usa nenhum dos rótulos de referência para a moda evangélica, mas tem como público alvo essas mulheres com interesse em um estilo mais conservador. Os donos, o casal Renato Villarinho e Cláudia Richa, são fieis da Igreja Cristo Rei.
Em entrevista ao jornal Valor Econômico em fevereiro de 2020, Cláudia explicou que a Zinzane busca atender clientes evangélicas ao oferecer roupas condizentes com a doutrina de cada uma delas e a diversidade de corpos.
Mesmo sem um levantamento oficial sobre o tamanho do mercado de moda evangélica, uma busca na internet traz diversas opções. É o caso da Via Tolentino, que deixa claro que atua para um público específico: "mulheres de valor".
Há ainda o grupo paranaense Titanium Jeans, criado em 2006 e que tem também a marca Laura Rosa. Um dos trunfos da empresa é ter uma garota-propaganda do meio evangélico, cantora gospel e com carreira na política: a deputada federal Lauriete (PSC-ES)
Uma alternativa para compras online desse nicho é o portal Via Evangélica, que se autodenomina "o maior portal de moda evangélica do Brasil". O site reúne 16 marcas que atuam nesse segmento e oferece opções nas categorias feminina, gestante, fitness, praia, saia, jeans, vestido festa e plus size.
Blogueiras de moda evangélica
Outro fenômeno que alimenta o crescimento da moda evangélica é o de influenciadoras digitais. Como Renata Castanheira, que mantém o perfil Crente Chic no Instagram, com 387 mil seguidores, e no YouTube, com 300 mil inscritos.
Mais um nome desse grupo é Ravane Nayara, com 157 mil seguidores do Instagram. Na descrição do perfil, ela anuncia que apresenta as melhores marcas de moda evangélica.
Jaq Jacob, com 220 mil seguidores no Instagram, tem um estilo jovem e moderno que atrai muitas seguidoras cristãs que apreciam a moda modesta, mas também buscam um toque de moda único e cheio de atitude. O perfil dela se destaca pela combinação de peças clássicas e contemporâneas.
Luxo e ostentação
Outra característica da moda evangélica é o luxo e a ostentação das lideranças e influenciadores ligados a algumas dessas igrejas. No perfil Outfit do Templo, no Instagram, é possível acompanhar o quanto investem essas celebridades gospel no próprio guarda-roupas e em acessórios.
É o caso do Rolex de ouro de Silas Mafaia, bem na linha do que passou nos cobres de modo ilegal o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), de quem o pastor raivoso é ferrenho defensor.
Outro pastor que adora uma polêmica moralista e que também usa Rolex é André Valadão.
O perfil tem uma coleção de exemplos do quanto custa vestir os defensores da tradição, família e propriedade. Bem diferente da legião de fiéis de suas congregações, que ao invés de receber, doam o dízimo para manter a vida de luxo de suas lideranças.