Uma listra é apenas uma listra? Não necessariamente. No caso da moda, um caleidoscópio que expressa o espírito do tempo, o campo simbólico reveste peças de significados e significantes.
Cada roupa que vestimos conta uma história. E, no caso do polêmico pijama listrado da rede de lojas Riachuelo, a estética remete ao uniforme de prisioneiros judeus em campos de concentração nazistas, durante o holocausto na Segunda Guerra Mundial. Ou não. Depende do repertório de cada pessoa.
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A crítica que desencadeou a treta foi feita no X (antigo Twitter) pela produtora cultural e gerente de projetos Maria Eugênia, especialista em cultura material e consumo e semiótica psicanalítica pela Universidade de São Paulo (USP).
Uma boa reflexão para explicar o impacto de uma peça de roupa na sociedade é a célebre frase do filósofo espanhol José Ortega y Gasset em sua obra Meditaciones del Quijote, de 1914.
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Eu sou eu e minha circunstância, e se não a salvo a ela, não me salvo a mim.
Temporada de listras
O caso da Riachuelo, cujo dono é o bolsonarista de carteirinha Flávio Rocha, não está isolado. Uma das artimanhas da moda, a filha predileta do capitalismo, é ser constantemente alimentada pela força poderosa do desejo.
Um recurso constantemente usado por essa mega indústria global é a obsolescência imaginada. Uma calça é apenas uma calça. Mas cada coleção impulsiona a sensação de que a peça antiga não serve mais.
Outro recurso são as tendências. Não é à toa que as vitrines sejam inundadas pelas mesmas cores e padrões a cada nova temporada. É o jeito da moda impulsionar os atributos para prosperar o Grande Capital - culto a fantasias e novidades, instabilidade, temporalidade e efemeridade.
No caso das listras que para algumas pessoas remetem a uniformes de prisioneiros do nazismo alemão, há várias coleções expostas Brasil afora na atual temporada.
Os listrados podem ser vistos - e comprados - por exemplo, na marca descolada paulistana Calma.
As listras também estão presentes na coleção Solarium da Souq.
Flerte antigo
Esse flerte da moda com a estética nazista é antigo. Em 2018, de um jeito bem mais enfático, a marca Lança Perfume, do grupo catarinense La Moda, fez uma alusão ao regime brutal de Adolf Hitler ao lançar a coleção "Uma Noite em Berlim" com roupas que se assemelhavam aos uniformes nazistas.
A marca usou estampas da Cruz de Ferro, símbolo apropriado pelos nazistas nas peças de roupa. Após críticas, a marca alegou que não queria fazer referências ao regime e disse “repudiar o nazismo e o fascismo em todas suas dimensões”.
Outra empresa que já usou a estética da morte do nazismo para criar peças de roupa foi a Urban Outfitters, que lançou uma coleção em alusão ao regime hitlerista.
Em 2015, a marca produziu peças com listras cinzas e brancas e um triângulo rosa, símbolo usado pelos nazistas para designar prisioneiros homossexuais em campos de concentração. A Anti-Defamation League (ADL), movimento estadunidense, pediu à empresa para remover as peças dos estoques.
Hugo Boss e os uniformes nazistas
Se na atualidade as referências da estética nazista ecoam na moda, à época do regime há associações diretas que só foram reveladas a partir da década de 2010.
Como a marca alemã Hugo Boss, que vestiu os soldados de Adolf Hitler antes e durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Hugo Ferdinand Boss, fundador e dono da empresa, fabricou uniformes para diversas instituições nazistas, como a Juventude Hitlerista e a implacável e criminosa Schutzstaffel (SS).
Atualmente, a grife mundialmente famosa é sinônimo de luxo e elegância. Boss morreu sem ver o auge, mas teve um importante e contestável papel para que isso acontecesse, afinal, caso não fosse aliado dos nazistas, a marca talvez não existiria como a conhecemos hoje.
A relação entre Hugo e o nazismo foi explorada mais a fundo em 2011, depois que a empresa contratou uma auditoria externa para entender a ligação do criador com o regime. Essa pesquisa deu origem ao livro ‘Hugo Boss, 1924-1945 – Eine Kleiderfabrik zwischen Weimarer Republik und Drittem Reich’ ( ‘Hugo Boss, 1924-1945 - Uma Fábrica de Roupas entre a República de Weimar e o Terceiro Reich’, em tradução livre).
Na obra, financiada pela própria marca, o pesquisador Roman Köster afirma que a confecção de Hugo, instalada no sul da Alemanha, se aproveitou da mão de obra forçada durante a Segunda Guerra Mundial. Por esse motivo, a empresa chegou a ser chamada de “alfaiataria de Hitler”.
Com o intuito de buscar “clareza e objetividade” sobre seu passado, a Hugo Boss levantou diversas discussões sobre sua história, do qual afirma lamentar profundamente “por aqueles que sofreram ofensas e passaram por dificuldades na fábrica dirigida por Hugo Ferdinand Boss sob o jugo do nazismo".
Chanel foi espiã nazista
Gabrielle Bonheur Chanel, a renomada estilista francesa que deixou uma marca duradoura no mundo da moda com o nome Coco Chanel, além do legado fashion teve também um passado obscuro como espiã nazista. É o que conta a biografia, também de 2011, lançada nos Estados Unidos.
À época do lançamento, a editora Knopf resumiu:
Chanel não se limitava a ser apenas uma simpatizante e colaboradora dos nazistas; ela era uma agente codificada que trabalhava para a Abwehr, a inteligência militar alemã.
A obra 'Sleeping with the Enemy: Coco Chanel’s Secret War (traduzida no Brasil pela Companhia das Letras como 'Dormindo com o Inimigo'), o jornalista estadunidense Hal Vaughan aborda detalhes do envolvimento da francesa com os nazistas, como seu número de agente na Abwehr, o F-7124.
Vaughan descreve como Chanel desempenhou missões em nome do serviço de inteligência nazista em Madri e Berlim, frequentemente ao lado de seu amante, o oficial Hans Gunther Von Dincklage. Algumas dessas missões foram realizadas sob a supervisão do general da SS Walter Schellenberg, braço direito do comandante-chefe Heinrich Himmler.
A biografia lança luz sobre a origem do antissemitismo da estilista e como ela foi recrutada pela inteligência nazista. Também esclarece como Coco Chanel usou sua posição como espiã para obter favores, como a libertação de seu sobrinho detido e suas tentativas de apropriação dos bens de sócios judeus de sua marca.
O livro também revela como a icônica figura da moda conseguiu evitar a morte quando foi detida e, posteriormente, liberada em Paris, onde passou seus últimos anos. Aos 71 anos, ela faleceu após nove anos de exílio na Suíça, onde buscou recuperar sua reputação e reinventar a marca que havia revolucionado o mundo da moda.
Moda é um caleidoscópio
O debate sobre se os pijamas da Riachuelo remetem ou não à estética nazista é válido. No entanto, não é possível contar uma história sem contexto. Uma listra é apenas uma listra, até que nosso repertório traga significados específicos.
Vale sempre o bom senso e avaliar as circunstâncias.
Na dinâmica de tendências usada pela moda, vamos ver muitos padrões de listras que podem, ou não, ser associados ao odioso regime hitlerista.
No final das contas, o burburinho criado por essas polêmicas semióticas do mundo fashion, para além do debate saudável de ideias, gera engajamento e publicidade. O marketing agradece quando a treta vira lucro. É assim que a filha predileta do capitalismo opera: embala e vende tudo, até indignação.