A cena de invasão de uma passarela durante desfile da semana de moda de Nova York (EUA), a New York Fashion Week 2023, nesta quinta-feira (14), viralizou nas redes sociais mundo afora. Vestido de touca de banho, sacola plástica transparente e shorts, o youtuber Fred Beyer chegou a caminhar pela passarela até ser retirado do local pelos seguranças.
O cara simplesmente entrou no desfile do New York Fashion Week vestindo uma sacola e ninguém achou estranho (até o segurança pegar ele) pic.twitter.com/XkDudvQvMs
— Zanfa (@Zanfa) September 13, 2023Te podría interesar
Do outro lado do Atlântico, durante a Semana de Moda de Londres (Inglaterra), a London Fashion Week 2023, realizada em fevereiro, outro youtuber, o britânico Zac Alsop, foi além. Ele fez com que seu avô fingisse ser um grande sucesso. Deu certo. Além de conseguir se infiltrar entre as celebridades, o idoso acabou sendo destaque na página oficial do Instagram do evento e na revista de moda Vogue.
Alsop fez o registro da trolagem no canal dele no YouTube. Ele explicou que os looks do avô foram garimpados em brechós londrinos.
O influencer também postou a pegadinha bem-sucedida na sua página no Instagram.
Só humanos escolhem aparência
Os seres humanos são os únicos capazes de escolher a própria aparência. Essa afirmação é do antropólogo, escritor e fotógrafo estadunidense Ted Polhemus (1947). Ele vive e trabalha na costa sul da Inglaterra e tem como foco de atuação moda e antimoda, identidade e sociologia do estilo e do corpo.
Na década de 1990, em um ensaio publicado no livro Moda: regole e rappresentazioni (Moda: regras e representações, em tradução livre), ele desenvolveu essa ideia de termos a possibilidade de moldar como nos apresentamos.
Somos a única criatura que muda intencionalmente o seu aspecto. O leopardo não pode mudar de cor, não se pergunta todas as manhãs: 'De que cor quero ser hoje?'.
A realidade sociocultural de cada um de nós condiciona essas escolhas. No caso das nossas roupas, a moda tem um papel central que nos convida a optar entre uma peça e outra.
Difícil é ter uma definição precisa do que seja moda. Mesmo sem um conceito claro, o sistema de moda está presente no nosso dia a dia: nas redes sociais, na tevê, nos editoriais de revistas de moda, nas vitrines etc.
Há um cardápio recheado de opções para explicar o que é moda. Para Edward Sapir (1884 -1939), um antropólogo e linguista estadunidense que é celebrado como um dos pais dessa disciplina nos Estados Unidos, "a moda é uma espécie de capricho". Há quem a defina como uma "nova e incompreensível forma de tirania social".
Já Jean Stoezel (1910-1987), um sociólogo francês, diz que moda é "a mudança gratuita, a mudança por amor à mudança". Enquanto o também sociólogo, o estadunidense Bernard Barber (1918-2006), a entende "como o crime, tem muitos referentes, ou seja, abrange tipos extremamente diferentes de comportamento social".
Buzz e unicórnio
Nesse balaio de definições, em tempos de redes sociais, como explicar o burburinho gerado pela invasão de uma passarela ou por uma farsa bem-sucedida? Para as pessoas comuns, os looks de plástico ou da trolagem não são tão distantes assim do que se vê na passarela, convenhamos.
Para além dos zilhões de likes que cada um desses episódios do universo da moda gera, vale refletir onde está essa indústria gigantesca e para onde ela vai.
Sobre esse episódio, Jackson Araújo, diretor criativo da plataforma de design social e regenerativo Trama Afetiva, faz uma provocação sobre a invasão da passarela na New York Fashion Week que merece ser considerada.
A moda tem se dedicado tanto a gerar buzz em imagens para criar engajamento e likes que tem esquecido de apostar no talento verdadeiro de designers que de fato possam criar uma nova evolução; assim, parece fácil para um youtuber "querer lacrar" na passarela alheia, passar desapercebido da direção do desfile e chamar a atenção numa passarela fantasiado de ducha-chuveiro-cortina de banheiro. Porque essa imagem contraditória pode parecer conceitual, pois é capaz de gerar likes e engajamento.
Para compreender essa onda de 'lacração fashion', Araújo cita a perspectiva da historiadora de moda estadunidense Valerie Steele (1955), curadora e diretora do Museu do Fashion Institute of Technology (EUA). Ela é autora de mais de oito livros sobre a história da moda e é considerada uma das pioneiras no estudo da área: "A moda não está morta, mas é uma paralisia crescente".
Araújo questiona ainda que, na atualidade, tem valido mais o número de seguidores nas redes do que criar peças de roupas criativas.
É que no final das contas, as marcas querem mesmo é pegar um influenciador do TikTok que tem 150 milhões de seguidores e colocar essa pessoa como diretor criativo. Uma pessoa que não pode criar nada além de chamar atenção. Considero uma estratégia muito míope, mas faz sentido quando olhamos pra moda querendo só vender o máximo que puder no agora.
O diretor criativo comenta ainda que a grandes marcas de moda global, que no Brasil só existem como lojas, querem profissionais que sejam bons contadores de histórias e com experiência digital. Ou seja, alguém que tenha uma presença nas redes, que possa cultivar seguidores, com referências (ainda que intelectualmente superficiais) para engajar públicos globais.
Na real, as marcas de moda estão todas buscando um unicórnio. E esse rapaz faz parte dessa categoria.
Depois de alguns minutos, passada a euforia e quando a piada perde a graça, os feeds nas redes sociais são renovados, outra pegadinha é feita e a indústria da moda segue deixando um rastro assustador.
Em plena emergência climática, para citar uma das pegadas desse setor, a produção das roupas que vestimos foi responsável, em um único ano, pelo equivalente a 4% de todas as emissões de gases de efeito estufa (GEE) no planeta, equivalente ao que jogam no ar França, Alemanha e Reino Unido, juntos.