PEPE MUJICA

A novela do Pepe Mujica - Por Emir Sader

O grande período histórico que vive atualmente a América Latina produz grandes personagens

Pepe Mujica.Créditos: Protoplasma K via Flickr/Creative Commons
Escrito en OPINIÃO el

Todo grande período histórico produz grandes personagens. O grande período histórico que vive atualmente a América Latina produz grandes personagens.

Dentre todos eles, três se destacam, porque estão profundamente enraizados na historia, nas condições de vida dos nossos povos e no seu caráter nacional. São eles: Evo Morales, Lula e Pepe Mujica.

Um é um líder indígena boliviano, líder cocaleiro, que soube captar e representar as identidades das populações originarias do seu país como ninguém. Me lembro de como, no dia da sua eleição para ser o primeiro presidente indígena da Bolivia, ele ficou comemorando, em Cochabamba, com sua gente, o triunfo.

Álvaro García Linera teve que chamá-lo por telefone e reiterar que ele teria que ir a La Paz, fazer um pronunciamento como novo presidente da Bolívia, o primeiro indígena eleito presidente de um pais majoritariamente indígena, além de ser o primeiro eleito no primeiro turno. Ele foi, fez um pronunciamento do hotel que estávamos, saudou a todos, recebeu nossos abraços e voltou para Cochabamba.

Um líder que fez questão de continuar a se proclamar como líder cocaleiro, para honrar sua trajetória e para honrar a luta de resistência da sua gente contra os bombardeios de aviões norte-americanos, que pretendiam queimar as plantações de coca, que servem como energético para as populações originarias.

Ver Evo tomar posse na cidade mais antiga das populações indígenas, em Tiwanaku, antes de tomar posse formal como presidente, expressava suas origens e sua identidade (cerimônia que eu tive o privilegio de assistir ao lado do meu querido e saudoso amigo Eduardo Galeano). 

Antes que tomasse posse formal no Palácio Queimado, em La Paz, as populações indígenas limparam completamente o Palácio e a própria praça em que ele se encontra, antes que seu líder entrasse ali como presidente indígena da Bolívia.

Evo é um personagem carismático, que representa, da melhor maneira possível, a identidade nacional boliviana. Sua vida é um capítulo essencial da própria vida da Bolívia.

Lula, por sua vez, nasceu no coração do setor mais miserável do Brasil, no sertão nordestino, filho do pior período de secas. Comeu pão pela primeira vez aos 7 anos. Fugiu da seca com os seus 8 irmãos sobreviventes, junto à sua mãe, Dona Lindu, guerreira, mesmo sendo analfabeta a vida toda.

Viajaram 13 dias de pau-de-arara, com a única roupa que tinham, comendo pouco e mal, tomando a água que podiam encontrar pelo caminho. Chegaram a São Paulo como os típicos imigrantes dos anos 1950. Para ser mão-de-obra barata que construía a riqueza da metrópole paulista.

Lula foi mascate, engraxate, office-boy, vendeu todo tipo de produto para aportar algum dinheiro que Dona Lindu administrava como podia para a sobrevivência da família. Escolhido para ser o único filho da Dona Lindu a estudar, fez escola técnica, se formou como operário mecânico, a partir de onde se tornou líder sindical, líder politico, até chegar a ser o mais importante presidente que o Brasil já teve.

A história do Brasil daquelas décadas sintetiza a historia do país da maneira mais expressiva e profunda. A biografia do Lula é a biografia do Brasil.

Pepe Mujica é o outro personagem emblemático do período político mais importante da América Latina. Ele teve a sorte de ter um livro que busca relatar características distintivas do Pepe, que fazem dele o personagem mais expressivo da historia do Uruguai nas ultimas décadas do século passado e nas primeiras deste.

No meu aniversário, meu filho Miguel me deu de presente um livro atraente já no titulo: "O presidente e o sapo" (editora Dulbinernse, de Porto Alegre, 2022), de Carolina de Sanctis, escritora uruguaia, residente nos Estados Unidos. É desses livros que a gente devora na leitura, pelo encanto do personagem, das suas vivências e da forma como são relatadas.

O livro busca construir o que teriam sido os anos de solitária do Pepe na prisão. Como ele disse, para não enlouquecer, passou a falar com as formigas, com o sapo, que cruzavam pela sua cela. Uma reconstrução feita, no livro, por uma jornalista norueguesa. Anos que, segundo Pepe, ele não seria o que é hoje, se não tivesse passado por tudo aquilo.

Que coloca as mesmas questões que os que pudemos estar com Pepe tanto na presidência do Uruguai, quanto no seu sítio - que ele e sua mulher compraram um ano depois dos 13 anos de seu confinamento solitário - tem vontade de colocar para ele. Se mesclam no livro as recordações de infância, os duros anos da prisão e da tortura, as conversas com o sapo, companheiro da solidão na cela, até suas experiências de presidente do Uruguai.

O livro constrói a trajetória de vida de um ex-preso político, de um ex-presidente – o presidente mais pobre do mundo. Mas, principalmente, de uma pessoa que, pela sua vida, pela sua sensibilidade, concentra em si mesmo os melhores valores que um ser humano pode ter. A leitura do livro nos enriquece humana e eticamente.

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum